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São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2003

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DIÁRIO DE BAGDÁ

De bombas, tempestades e frutas frescas


"As bombas e as guerras vão e vêm, mas as frutas continuam chegando e têm de estar sempre frescas", diz comerciante

Bagdá amanheceu com uma camada de poeira bege e ficou monocromática. Para complicar, o governo segue queimando petróleo



JUCA VARELLA E SÉRGIO DÁVILA
ENVIADOS ESPECIAIS

COMÉRCIO REABRE AS PORTAS

Aos poucos, o comércio voltou a abrir as portas em Bagdá. A porcentagem de lojas funcionando ainda é pequena, segundo o governo, mas dobrou dos 5% dos últimos dias para 10% ontem.
Paradoxalmente, era nas regiões mais afastadas do centro que os negócios eram feitos, caso do tradicional mercado Shorga. Casas de câmbio, fruteiros, padarias e lanchonetes arriscaram subir as portas de aço naquela região, para receber uma clientela que estava cansando de esperar.
Foi o caso de Hassan Hussein Mohammed Ali, que vendia aos berros bananas, laranjas e outras frutas. O comerciante, que diz ter 45 anos mas aparenta pelo menos 15 anos mais, afirma que é casado com duas mulheres e tem oito filhos e colocou todos para trabalhar para ele. Não tem medo da guerra e pretende ficar aberto todos os dias daqui para a frente.
"As bombas e as guerras vão e vem, mas as frutas continuam chegando em minha porta e têm de estar sempre frescas", filosofa. Indagado sobre se aumentou os preços por conta do conflito, reluta e acaba dizendo que não.
"Esta banana, por exemplo, custa os mesmo 250 dinares de antes", afirma. O repórter compra uma, o que leva as pessoas em volta a exigirem o mesmo preço. "Para ele é 250, mas para vocês continua sendo 750 dinares."

NO AR, AREIA, CHUVA E PETRÓLEO

Há algo nos céus de Bagdá além da chuva de mísseis. Meteorologistas ouvidos dizem que as partículas vieram até do Egito e da Jordânia. A olho nu, é claro que não é possível fazer a distinção. Mas, desde que a tempestade de areia tomou a cidade, anteontem, o ar de Bagdá ficou tão denso e poluído que está virando quase palpável.
"Não vejo um tempo assim desde que os meus sete anos de idade", disse à Folha o bagdali Sabbah Abdul Kadyr, 39.
Bagdá amanheceu ontem coberta por uma camada fina de poeira bege, que deixou a paisagem monocromática. No fim da manhã, o sol chegou a sair, mas a tempestade voltou com força redobrada na hora do almoço, seguindo a mesma paleta de anteontem. Primeiro, deixando o ar amarelo-ouro. Depois, laranja. Por fim, vermelho. Com isso, as luzes artificiais, como os faróis dos carros e os postes, ganhavam uma estranha cor azul. A visibilidade nas ruas era de menos de cinco metros. Então, choveu.
Para complicar, o governo seguiu com sua tática militar altamente questionável de queimar petróleo para que a fumaça preta confunda mísseis e aviões da coalizão anglo-americana. O método é inócuo para armamentos guiados a laser e satélite.

Água suja, poeira e a cara do Taleban

Todos os dias, os cerca de 150 jornalistas em Bagdá são obrigados a passar na sede do Ministério da Informação, onde acontecem as principais entrevistas coletivas e de onde saem as autorizações para andar pelas ruas. Acontece que o prédio é um provável alvo militar, a se levar em conta o padrão dos ataques até agora.
 
O resultado é que pelo menos uma vez por dia o edifício é espontaneamente evacuado pela própria imprensa.
 
Começa assim: alguém da equipe da agência de notícias Reuters ou da emissora britânica BBC ouve de "fonte fidedigna" que o ministério será bombardeado em cinco minutos. Em três, todo o mundo foi embora.
 
A área em que se encontra o ministério foi uma das mais visadas pelas forças anglo-americanas na primeira fase do conflito, até sexta, e voltou a ser atacada no começo da semana. Próximos do local estão pelo menos dois palácios presidenciais, um já atingido, e a sede do Escritório de Segurança da região, também atingida.
 
Ontem, foi a vez da vizinha sede da rádio e TV iraquiana levar uma saraivada de mísseis que a destruíram quase totalmente.
 
Além disso, a relação entre governo e imprensa anda tensa desde que a equipe da CNN foi expulsa do país. Outro jornalista, da agência France Presse, também foi expulso por ter prestado trabalhos para a emissora de Atlanta depois da expulsão desta.
 
Mais: também nos últimos dias membros da polícia secreta iraquiana deram batidas em quartos de jornalistas em busca de telefones por satélite. Cinco deles foram apreendidos recentemente.
 
É que o uso dos telefones e dos links por satélite só é permitido dentro da sede do ministério. Mas o horário de funcionamento ali é limitado.
 
Some a isso as bombas, que continuam caindo, o ar, que continua irrespirável e seco, e a água, que sai suja das torneiras e deixa todos com a cara e o cabelo do Taleban americano quando este foi capturado, e eis o quadro geral do jornalista médio em Bagdá.
 
Ontem de manhã, enquanto visitávamos uma área civil atingida, fomos sacudidos do chão por outras duas bombas consecutivas que caíram a centenas de metros. Um jornalista europeu se surpreendeu: "Ainda tem perigo?".
Ainda tem, e terá cada vez mais.
 
Enquanto isso, vai se percebendo que a burocracia brasileira veio dos colonizadores portugueses, sim, mas estes a herdaram dos invasores árabes. Nada em Bagdá é resolvido sem que pelo menos quatro barnabés bagdalis estejam diretamente envolvidos.
  Chega a ser cômico: para carimbar um documento ou pagar uma taxa, no mínimo quatro funcionários públicos são mobilizados. E não há salinha de repartição que não conte com quatro iraquianos sentados, um em ação, os outros três olhando.
 
Para piorar, você descobre que no Iraque, com exceção dos comerciantes e mascates, todos são funcionários públicos.


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