São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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ONU abre caminho no Líbano para solução sem barbárie

O Hizbollah provou sua resistência e poderia voltar a se agrupar, mas uma nova guerra transformaria o país em terra arrasada e cenário de desolação bíblica

RAMI G. KHOURI
EM BEIRUTE

Visitei os subúrbios da zona sul de Beirute nesta semana, pela primeira vez desde que Israel os bombardeou impiedosamente. Era impressionante observar o trabalho de limpeza e reconstrução que estava em execução pelo Hizbollah, pelo governo e por dezenas de organizações não-governamentais tanto libanesas quanto estrangeiras. Dezenas de milhares de pessoas caminhavam entre os destroços exibindo orgulho e um senso de realização por terem resistido aos ataques e pelo Hizbollah ter conseguido impor ao menos um empate em seu confronto com Israel.
Mas nem todos os meus sentimentos eram positivos, enquanto eu via o Hizbollah distribuir pagamentos em dinheiro no valor de US$ 10 mil ou mais para permitir que as famílias cujas casas foram destruídas sobrevivessem ao longo do próximo ano. Eu não pude deixar de imaginar como seria se a guerra não tivesse acontecido e o Hizbollah tivesse dado às cerca de 15 mil famílias elegíveis US$ 10 mil para outros fins, como comprar computadores, enciclopédias e livros de poesia ou propiciar educação universitária a milhares de estudantes merecedores.
Mas o mundo não gosta disso. O ataque maciço de Israel contra objetivos civis e alvos militares do Hizbollah em todo o território do Líbano é um sinal da irracionalidade acompanhada por certa dose de barbárie -que freqüentemente define as decisões políticas nessa parte do mundo.
A resposta do Hizbollah foi desenvolvida com base na experiência de um quarto de século que a organização adquiriu no combate aos ataques, à ocupação e às ameaças israelenses. Os 3.000 mísseis e foguetes disparados contra o norte de Israel causaram certos danos materiais e humanos, mas enviaram uma poderosa mensagem política que ressoou por toda a região: Israel não é invencível e pode ser contido por meio de planejamento determinado e resistência corajosa.

Perspectivas
Isso é correto, mas o que acontece a seguir? Outra guerra? Abrigos contra bombas melhores? Mísseis mais precisos? Mais 25 mil casas destruídas no Líbano e em Israel? Enquanto a batalha prosseguia no Líbano, a opinião pública no mundo árabe e entre os governos da Síria, Irã e de alguns outros países estava preparada para lutar contra Israel até a morte. Israel, com apoio diplomático explícito de Washington e linhas de reabastecimento militar abertas junto aos arsenais norte-americanos, está preparado para destruir o Líbano. Ponto final. São duas perspectivas nada convidativas. Merecemos opções melhores.
Esta foi uma guerra que o Hizbollah só podia travar uma vez, para provar sua capacidade e sua determinação política, o que a organização fez de maneira bastante enfática. Caso o conflito venha a se repetir, no entanto, o Líbano será devastado, literalmente incendiado pelo fogo israelense. O Hizbollah não seria destruído, e poderia se reagrupar e voltar a lutar, talvez com poder destrutivo ainda maior e capacidade de penetração mais profunda em território israelense.
Mas o Líbano se tornará uma terra arrasada, um panorama de desolação bíblica. Como Sodoma e Gomorra no livro do Gênese, o Líbano seria queimado e suas ruínas calcinadas se tornariam um eterno lembrete para as futuras gerações sobre a devastação que povos ou Estados devem esperar caso desafiem a ira divina ao ameaçar a segurança de Israel ou desafiar a vontade de Washington com muita freqüência.
Israel acredita que pode viver em um cenário como esse como preço por sua segurança e sobrevivência. O país está disposto a travar esse tipo de guerra tantas vezes quanto forem necessárias, contra a Síria e talvez contra o Irã, possivelmente em acordo com os Estados Unidos.
Algumas pessoas em Washington apreciam esse caos e destruição nas terras árabes e islâmicas, acreditando que apenas um ataque frontal dessa monta contra a cultura política prevalecente entre os árabes poderia romper o molde que definiu muitas de nossas violentas nações na era moderna.
O Afeganistão e o Iraque são exemplos dessa abordagem. Os territórios palestinos estão a meio caminho dela. O Líbano é candidato ao esquecimento político e acaba de receber seu último aviso. A mensagem do ataque e do cerco israelense a Beirute é simples: aqueles que acreditavam que poderiam transformar a Paris do Oriente Médio em sua Hanói terminarão por vê-la transformada em Mogadício, a capital devastada de um Estado somali fracassado e desorientado, eterno foco de disputa entre gangues e senhores da guerra rivais.

Avanços
O Hizbollah não pode travar de novo a mesma guerra e deve agora se concentrar em explorar os avanços que conquistou, por meio de trabalho político no Líbano e em toda a região. A organização não sinalizou a direção ou tom de seus planos políticos, mas os sinais das três últimas semanas indicam que vai redirecionar sua energia para a política interna libanesa caso Líbano, Israel e Estados Unidos permitam que o faça.
Não consigo ver outra interpretação para as quatro significativas decisões que o Hizbollah tomou desde o começo de agosto: aceitar o plano de paz de sete pontos do primeiro-ministro Fouad Siniora; aceitar a decisão do governo libanês de enviar tropas do Exército para a região fronteiriça no sul do país; aceitar a resolução 1.701 do Conselho de Segurança das ONU e o pedido por uma força de paz internacional com efetivos maiores no sul do Líbano; e trabalhar energicamente para repovoar e reconstruir as áreas civis ocupadas principalmente por xiitas que foram bombardeadas e esvaziadas durante a guerra.

Processo político
O Hizbollah alegará, com alguma credibilidade, que forçou Israel e a comunidade internacional a tratarem das questões que importam ao Líbano, como a região das Fazendas de Shebaa, os prisioneiros e os ataques que atravessam fronteiras. O processo político imposto pela ONU nos termos da resolução 1.701 oferece um caminho para solucionar essas questões. Caso obtenha sucesso, poderia até revigorar um processo de solução regional de conflitos baseado na lei e impulsionado por negociações, em lugar de irracionalismo, barbárie e desolação. Logo descobriremos se aqueles que combateram com tamanha ferocidade, de ambos os lados, são igualmente capazes de aprender as lições do combate e nos levar a um futuro que se assemelhe mais a Paris do que a Mogadício.


RAMI G. KHOURI é colunista publicado internacionalmente e editor do jornal "Daily Star", de Beirute
Tradução de PAULO MIGLIACCI


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