São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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ARTIGO

A guerra não tem de ser inevitável

MUSA AMER ODEH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um ano depois dos ataques de 11 de setembro, com os Estados Unidos fazendo pressão a favor de um ataque contra o Iraque, embora nenhuma prova tenha sido apresentada da ligação daquele Estado com os terroristas, e com Israel recrudescendo sua guerra contra o povo palestino enquanto o mundo parece olhar para o outro lado, é lastimável ver os advogados da guerra atiçando ainda mais as chamas.
Em seu longo artigo datado de 11 de setembro, o sr. Nelson Ascher, articulista da Folha, começa afirmando que o primeiro capítulo da Terceira Guerra Mundial havia começado.
Ele usa a teoria da conspiração para explicar acontecimentos e distorce argumentos para defender seus pontos de vista. Por outro lado, seu artigo foi mais uma voz somada à daqueles que vêm tentando desumanizar ou até demonizar toda uma cultura.
Isso é profundamente lamentável, pois pouco ajudou a explicar aquele crime terrível. Nós, como vítimas das ações diárias do terror de Israel e que nas últimas décadas vimos muitas demolições e destruições de edifícios e residências ("ground zero") em nossas aldeias e cidades (o campo de refugiados de Jenin foi um deles, o massacre de Sabra e Chatila está completando 20 anos), sentimos a angústia e a dor do povo americano e das famílias das vítimas.
Junto com todos os povos do mundo condenamos os perpetradores de 11 de setembro e, antes deles, os autores do bombardeio em Oklahoma. Sentimos também a necessidade de mudanças profundas nas teorias e nos conceitos que estão alimentando o terrorismo, bem como naqueles que tentam erradicá-lo.
Se o artigo do sr. Ascher tinha a intenção de anunciar a nova era colonial do século 21, com o potencial de devastação que a acompanha, então temo que não tenha dito nada de novo. O que ele apresentou, todavia, foram distorções seletivas da realidade que ele utilizou a fim de depreciar Estados e culturas, incluindo a Europa, numa tentativa de firmar sua posição. Ele anunciou um iminente e destinado "caos internacional", visto que nem mesmo dez poderosos Estados combinados podem derrotar os Estados Unidos da América.
O sr. Ascher viu os Estados árabes representando o "fascismo islâmico" e a Europa discretamente satisfeita com o que aconteceu aos EUA porque ela não está totalmente contra os fundamentalistas. Ele anunciou até o "fracasso" do modelo ou sistema europeu e viu um imenso fosso separando os EUA e a Europa. O sr. Ascher quer que nós esqueçamos também as "obsoletas" comunidade internacional e Justiça internacional.
A questão aqui não é o indiscutível imenso poder militar dos EUA que, por si só, não pode tornar o mundo mais seguro e pacífico. Nem argumentos que ofendem culturas e acusam-nas de fascismo, ou descrevem o atual conflito como entre civilizados e não-civilizados, ou políticas simplistas do bem e do mal, conosco ou contra nós, resolvem qualquer problema. O mundo inteiro tem algum interesse nessa questão.
Ascher disse que Israel "reapareceu no século 20", ignorando assim como foi esse "reaparecimento" e o fato de que Israel permanece a única "potência de ocupação" (nos termos da ONU), que vem oprimindo o povo palestino, cometendo massacres, limpeza étnica, confisco de terras e de recursos naturais, bombardeando civis, demolindo casas, cometendo assassinatos por meio de bombardeios de mísseis, praticando punição coletiva contra uma população inteira, e a lista é longa... Em termos legais, isso é chamado de terrorismo de Estado.
É interessante observar como Israel apressou-se a se identificar com os EUA logo depois de 11 de setembro a fim de impor sua própria agenda. Resistir à ocupação passou a ser terrorismo, e isso foi usado como um pretexto para desencadear uma invasão após a outra numa campanha de morte e de destruição contra civis palestinos. Uma destruição sistemática da sociedade palestina está em curso agora, em que instituições educacionais e públicas estão sendo destruídas, casas demolidas e toques de recolher prolongados estão privando centenas de milhares de pessoas de educação, liberdade de movimento e de trabalho. É isso que Israel está fazendo na Cisjordânia e na faixa de Gaza ocupadas, onde metade da população palestina vive abaixo da linha de pobreza (a taxa de desemprego é de mais de 50%).
Os palestinos estão resistindo à ocupação justamente como todos os povos o fizeram em situações similares em diferentes períodos da história (um deles foi a Europa contra a ocupação nazista).
Líderes israelenses que, depois de 11 de setembro, declararam que a "guerra de independência" não havia terminado queriam lembrar ao mundo que nessa guerra contra o povo palestino, como as guerras prévias (a catástrofe/Nakba palestina de 1948), eles usarão o terrorismo e a limpeza étnica como fizeram antes, mas agora o farão com o arsenal mais sofisticado de armas fornecidas pelos EUA e, com certeza, o estão fazendo.
Não se consegue ver "a obsessão favorita e duradoura do mundo árabe: a destruição de Israel", ou o apoio da Europa a isso, especialmente à luz da iniciativa árabe para a paz, anunciada em março passado em Beirute. A propósito, Israel respondeu a essa proposta em poucas horas, invadindo e reocupando cidades palestinas.
Quando o sr. Ascher chama o que ele descreve como obsessão com judeus "o sintoma mais óbvio de uma cultura política doentia e demente", ele está claramente confundindo as coisas.
Evidentemente, para todos aqueles que conhecem um pouco de história, o conflito no Oriente Médio nasceu somente quando Israel desmembrou um país, expulsou mais da metade de sua população, depois ocupou o resto da Palestina em 1967. O meio mais curto para acabar com o conflito agora é pôr fim a essa ocupação de modo que o povo palestino possa ter seu próprio Estado independente sobre 22% da Palestina histórica, que foi ocupada em 1967, dando ainda uma solução justa para o problema dos refugiados, de acordo com as resoluções da ONU.
O sr. Ascher, entretanto, crê que existem apenas dois cenários: ou a "vitória" de Israel ou "a devastação completa da vizinhança". Ao pedir a morte dos Estados árabes, uma vez porque eles são agora uma ameaça aos EUA e, outra vez, porque Israel deve ser vitoriosa (por mais estranha que pareça essa lógica), ele navega farisaicamente para bem distante da razão e abraça conceitos desastrosos.
Retirando-se de todos os territórios árabes que ocupa atualmente, Israel daria o primeiro passo para acabar com o conflito com seus vizinhos árabes. Isso pavimentaria o caminho para a estabilidade política e a prosperidade econômica na região.
Terroristas e anarquistas têm existido ao longo da história, mas nunca se ouviu falar de uma religião "terrorista". Grupos ou indivíduos têm usado pretextos religiosos para suas ações, até guerras foram travadas em nome da religião, quando os verdadeiros motivos eram políticos e econômicos. O elo que o sr. Ascher tenta estabelecer entre o nacionalismo palestino e o fundamentalismo é totalmente infundado. Nosso povo aspira por liberdade, democracia e independência da ocupação militar israelense, que é, em si mesma, a forma mais completa de terrorismo.
Longe de ser fundamentalista ou intolerante, nossa sociedade se orgulha de sua cultura e de seus valores. Ações de indivíduos ou grupos não justificam a demonização de uma nação inteira.
Criados, treinados e financiados com bilhões de dólares pelos EUA a fim de combater os soviéticos no Afeganistão, Bin Laden e os "mujahedin", que eram os aliados dos EUA e sem qualquer ligação com os objetivos nacionais palestinos, simplesmente se tornaram dispensáveis com o fim da Guerra Fria. O Afeganistão foi então entregue a seus senhores da guerra e virou uma nação em ruínas.
Liberdade e democracia não são nem uma invenção dos EUA nem seu monopólio. A Europa pagou um alto preço por elas e inspirou o resto do mundo a segui-la. Se o mundo hoje quer preservar a liberdade e a democracia, fazer justiça, proporcionar desenvolvimento sustentado e paz para todos, então teorias supremacistas são desnecessárias, bem como um poder pessoal que determine as leis e as implemente.
Não é preciso destruir tudo o que foi criado até hoje e acordado como princípios que salvaguardam os direitos humanos e as relações multilaterais governamentais nem regredir à política da força. O 11 de setembro será um anunciador da Terceira Guerra Mundial somente se nós abandonarmos tais princípios e permitirmos que as teorias supremacistas prevaleçam. O mundo não precisa de advogados da guerra não importam quais sejam seus motivos, agendas ou conceitos. Precisamos, pelo contrário, de mais compreensão, cooperação e ação multilateral. O Oriente Médio não precisa de outra guerra que serviria somente para aumentar o sofrimento, o ódio e a amargura. Precisa de muito trabalho para que a paz e a justiça prevaleçam.


Musa Amer Odeh é embaixador da Delegação Especial da Palestina no Brasil


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