São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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ANÁLISE

O sociólogo alemão Ulrich Beck diz que crise dá força à "Terceira Via de direita" e que promessas de criar empregos são irreais

"Terceira Via de esquerda perdeu força"


JAVIER MORENO
DO ""EL PAÍS"

O emprego acabou. Não existe trabalho para todos, e não voltará a existir. Ou, pelo menos, não na forma em que o conhecemos agora. Digam o que disserem os políticos, a verdade é que teremos de nos adaptar à nova situação, criar alternativas. Os empregos fixos e que duravam toda a vida ficaram no passado. Mas é possível mudar nossa perspectiva.
Se admitirmos que, em lugar de fechar portas, a crise do emprego vivida nas sociedades avançadas nos últimos 30 anos abre novas possibilidades, tudo muda. É o que afirmam alguns sociólogos que se dedicam a tentar prever como será esse futuro que hoje podemos apenas intuir.
Ulrich Beck, 58, professor do Instituto de Sociologia de Munique e da London School of Economics, autor de ""Freiheit oder kapitalismus" (liberdade ou capitalismo), é um deles.
Beck acredita que estejamos vivendo num mundo cada vez menos previsível, no qual as consequências das decisões -econômicas ou outras- dos governos, das empresas e dos indivíduos são cada vez mais difíceis de calcular.
Na opinião dele, existe a tentação, por parte dos Estados, de transferir as consequências de tudo isso aos cidadãos.
Os Estados querem desmontar as redes de segurança que eles próprios ergueram, com grande esforço, no século passado, deixando o cidadão sozinho para arcar com suas responsabilidades.
Beck reconhece que o título de seu livro foi pensado como provocação. ""Acostumamo-nos a considerar que existem dois fatores de liberdade -o capitalismo e a democracia-, que eles podem fundir-se numa única figura e que não existem discrepâncias internas entre capitalismo e liberdade. Acho que, sob muitos aspectos, isso é verdade. Mas, se analisarmos a questão desde um ponto de vista sociológico, vamos identificar uma certa tensão, uma certa contradição que se nota com frequência cada vez maior."

Pergunta - Muita gente pergunta se ainda podemos ter a esperança de encontrar solução para alguma coisa neste mundo.
Ulrich Beck -
Eu estou entre os poucos que pensam que ainda existem soluções. Mas as soluções não se encontram onde até agora supúnhamos que estivessem. O problema é que o Estado nacional já não está em condições de formular soluções. Um exemplo é a queda da receita fiscal, em função da globalização. As grandes empresas já não pagam apenas impostos. Mas existe a possibilidade de resolver o problema, mediante a cooperação entre países. É nisso, em última análise, que consiste o experimento europeu.

Pergunta - É verdade, mas os problemas principais não têm solução nem em nível europeu. O desemprego, por exemplo.
Beck -
Naturalmente, há problemas que só poderão ser resolvidos num contexto global, no qual todos terão de cooperar. Até agora sempre pensamos muito em termos de política nacional. Essa lógica, e o realismo que a sustenta, se mostra cada vez mais falsa, na medida em que, nesse paradigma, os problemas nem sequer aparecem. Chama-se a isso realismo, mas na verdade é de uma irrealidade total.

Pergunta - De qualquer maneira, o sr. já disse em outras ocasiões que quem disser que será possível haver pleno emprego estará mentindo. É verdade que não voltaremos a ter pleno emprego?
Beck -
Ninguém pode arriscar uma resposta agora. Os dados de que disponho, baseados no desenvolvimento do mercado de trabalho nas últimas três décadas, indicam que a Europa vem sofrendo uma contração permanente do trabalho remunerado.
Quando se estuda a questão de maneira empírica, fica claro que existe na Europa uma situação de divisão total: por um lado há todo um setor que, como antes, continua a trabalhar em regime de tempo integral; por outro, há uma parcela cada vez maior do que poderíamos chamar de ""trabalho frágil".
Isso quer dizer que esses trabalhadores não contam com a segurança de um contrato fixo, que seu tempo se organiza de maneira flexível e que, às vezes, eles precisam trabalhar em vários lugares para manter o mesmo nível de vida.
Esse tipo de trabalho vem se multiplicando de maneira notável em todos os países nos últimos 30 anos. Na Alemanha, um terço da força de trabalho tem empregos frágeis; nos EUA e no Reino Unido, a metade. Mesmo onde ainda existe a idéia do pleno emprego já não se está falando tanto da forma de trabalho antiga, em tempo integral. Algumas dessas novas formas podem ser avaliadas positivamente.

Pergunta - É verdade? Na Espanha, as pessoas ainda preferem um contrato à moda antiga, em tempo integral, quando possível.
Beck -
Isso já não é possível. A sociedade precisa se acostumar a essa nova situação.

Pergunta - E o sistema político não pode fazer nada.
Beck -
Vamos voltar à questão anterior: liberdade ou capitalismo. Que tipo de segurança é possível oferecer às pessoas? Como se pode fundar uma família, organizar o dia-a-dia, assumir a responsabilidade de ter filhos, quando se dispõe apenas de um contrato de trabalho temporário?

Pergunta - Justamente: como?
Beck -
Quem está nessa situação deve ter claro que, embora continue aspirando a ter um emprego tradicional, apenas uma parte da sociedade vai conseguir tê-lo. Logo, é preciso organizar-se de outra maneira, ou então votar em partidos políticos que levem esses problemas a sério.
Existem possibilidades de combater o problema. A primeira é transferir para o indivíduo os riscos da flexibilização do trabalho. Outra consiste em refletir sobre como se poderiam garantir as condições de vida das pessoas, independentemente de seus empregos. A forma extrema seria pagar um salário social. É uma utopia, mas existem outras maneiras.
Acho que é preciso deixar de pensar nas reivindicações sindicais antigas de trabalho para todos, porque cada vez há menos, e começar a desenvolver essas novas maneiras de assegurar a subsistência das pessoas. É possível. É preciso apenas pensar como torná-las praticáveis, como financiá-las, etc.
Outra possibilidade consiste em tentar novas formas de trabalho, além do trabalho remunerado, que sejam atraentes, reforcem a identidade do indivíduo e lhe dêem a oportunidade de fazer algo que faça sentido na vida. O importante não é apenas o dinheiro, mas também o reconhecimento de participação social.

Pergunta - Soa atraente. Mas então entra a política no meio, e tudo se complica. O sr. disse que, dois ou três anos atrás, se decepcionou com a Terceira Via. O sr. continua decepcionado?
Beck -
Meu amigo Anthony Giddens fez um trabalho maravilhoso ao formular a Terceira Via.

Pergunta - E mesmo assim...
Beck -
Mas ele cometeu um erro na escolha das palavras, pois, em última análise, a formulação da Terceira Via foi dos políticos. É uma invenção de Clinton ou de Blair, não está claro de quem. Giddens se distanciou um pouco do conceito. O que ele queria, assim como eu quero, era formular uma resposta política a uma situação histórica nova. Mas ele continua aceitando o postulado de que o pleno emprego é possível. Ou a de que, em última análise, a instância na qual os problemas se resolvem é a do Estado nacional.

Pergunta - Falando de políticos, tenho a sensação de que existe pouca relação entre eles e os cientistas sociais, como o sr., que se dedicam a esses problemas.
Beck -
Há grandes discrepâncias entre as discussões que acontecem nessas redes intelectuais e a forma em que isso se traduz em propostas políticas. Tenho a impressão de que esse processo fosse mais intenso três ou quatro anos atrás. Depois se produziu um certo distanciamento. Não está claro para mim por que isso aconteceu.
Por exemplo, Gerhard Schröder já esteve sentado aí onde o senhor está.

Pergunta - Nesta mesma cadeira?
Beck -
Sim. Ele ainda não era nem candidato a chanceler [premiê alemão" pela primeira vez. Falamos de todos esses problemas. Ele concordou comigo em que é impossível alcançar o pleno emprego e que é preciso começar a pensar em alternativas. Mas nada disso restou em sua política.

Pergunta - Não se pode dizer em público que não está ao alcance da política garantir o pleno emprego.
Beck -
Mas ele poderia dizer que estão sendo estudados projetos alternativos. Queremos o pleno emprego, estamos tentando consegui-lo, mas, enquanto isso não acontece, oferecemos alternativas.

Pergunta - O sr. acha que é assim que se ganham eleições?
Beck -
Seria possível fazê-lo, com grupos muito específicos. Acho que os jovens, por exemplo, estão muito frustrados com a política, porque não vêem refletidos nela seus próprios valores. A mesma coisa acontece com os aposentados. Como eles poderiam utilizar seus conhecimentos e interesses? Os desempregados, etc. Se tudo isso fosse bem feito, poderia ser formulado como uma oferta que tornaria alguns partidos atraentes outra vez. Muitas pessoas estão mais dispostas a lançar-se em mudanças radicais do que o estão os partidos políticos. Muitas pessoas sabem que as receitas velhas já não funcionam mais.

Pergunta - Os partidos políticos também sabem disso. Na realidade, parece que já está começando a surgir uma Terceira Via invertida: da direita para a esquerda. Uma Terceira Via conservadora.
Beck -
Sim, acho que é uma possibilidade. Começa-se a notá-lo em todas as áreas. Mas pense em outro ponto. Se observarmos a história da Europa, veremos que, na realidade, foram os partidos conservadores que possibilitaram um certo cosmopolitismo. Na Alemanha foi Adenauer, na França, De Gaulle; na Itália, outros, que também vinham da tradição cristã, liberal e conservadora. Não existe apenas o cosmopolitismo de esquerda. Também existe um cosmopolitismo de direita.

Pergunta - Essa tentativa de estabelecer uma Terceira Via vinda da direita seria uma reação ao sucesso de Blair e Schröder?
Beck -
Exatamente. Está cada vez mais difícil distinguir Berlusconi de Blair e está cada vez mais complicado traçar as linhas divisórias entre as diferentes posições. A Terceira Via de esquerda, a esquerda neoliberal, a de Blair, para que fique claro, está sendo pressionada pelo potencial político do problema da imigração. Infelizmente, o sonho de uma Terceira Via de esquerda perdeu força.

Pergunta - Tampouco há muita diferença em relação à questão do terrorismo internacional.
Beck -
Trata-se de uma questão que não pode ser resolvida no contexto nacional. Os próprios Estados Unidos, a maior potência militar do planeta, equipararam de maneira natural sua segurança nacional com a segurança mundial. Portanto, inclusive os EUA precisam cooperar na solução desses problemas, embora essa colaboração se defina de forma muito unilateral. Em outras palavras, para resolver problemas nacionais, até mesmo os EUA precisam tentar, de alguma maneira, criar instituições que ultrapassem o âmbito nacional.
Na Europa, temos o problema de não dispormos de uma força militar européia. A Otan não é um Exército europeu. É uma condição necessária.


Tradução de Clara Allain


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