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OLHAR BRASILEIRO
À espera da fraude
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
Dada a falta de legitimidade da
vitória de Bush em 2000 e as iniciativas de profundas conseqüências tomadas por seu governo, as
eleições de 2 de novembro estão
sendo vistas como um referendo
sobre sua política interna e, sobretudo, externa.
Mas será realmente um referendo? Por mais que a Guerra do Iraque seja um desastre em todos os
sentidos e polarize a opinião, por
mais que a economia tenha estagnado e o déficit interno crescido,
por mais que o corte de impostos
tenha favorecido os ricos, por
mais que ameaças de atentados
sejam usadas pelo governo para
assustar o eleitorado e incutir a
idéia de que Bush é mais macho
do que Kerry, não estou certa de
que isso vá decidir a eleição.
O que acaba decidindo são os
chamados "temas específicos"
próximos de cada um. Basta ver
que uns bispos católicos decretaram que era pecado votar em
Kerry, porque ele é favorável ao
direito ao aborto.
Nesse sentido, o que apavora
muitos norte-americanos é a
composição da Suprema Corte.
Afinal os juízes do Tribunal são
vitalícios e sobrevivem portanto
aos governos. Por considerarem
ilegítimo o governo atual, os democratas obstruíram até agora
todas as nomeações de juízes que
Bush tentou fazer. Mas quem for
eleito desta vez vai poder indicar
uns três ou quatro.
As inclinações desses juízes são
consideradas essenciais. Por quê?
Porque num país com uma Constituição de apenas 12 artigos, é a
Suprema Corte que define as
grandes direções do que aqui é
chamado de "questões culturais".
Para a direita "profunda", interessam as posições dos juízes quanto
a aborto, ensino religioso e juramento à bandeira nas escolas, casamento gay, pesquisa com células-tronco, ou seja, o que os fundamentalistas cristãos e nacionalistas entendem por valores americanos. Para os outros, acrescentam-se as liberdades democráticas, a ecologia, as instituições.
A expectativa é que haja fraude
nas eleições, e os indícios são
preocupantes. Para começo de
conversa, não há e não haverá até
2006 um registro nacional de eleitores. Em um país onde o voto
não é obrigatório, grupos de interesse têm feito enormes esforços
para que os cidadãos se alistem e
votem. Desde já, em alguns Estados está se negando registro de
eleitor à população pobre, sobretudo negra, com todo tipo de subterfúgios. Prevêem-se longas filas
e obstruções para desencorajar a
população a votar.
Ninguém confia no voto eletrônico que vai ser usado pela primeira vez em razoável escala (1/3
dos votantes), porque é gerido
por companhias privadas, algumas com antecedentes partidários. O Estado de Missouri está até
pedindo aos soldados no exterior
que mandem votos abertos por e-mail através de uma companhia
que tem contratos militares!
Finalmente, a possibilidade de
recontagem é crucial, mas achou-se supérfluo gastar em máquinas
que passassem recibo do voto eletrônico em papel e que, portanto,
permitissem uma eventual recontagem. Com o clima tenso e polarizado desta eleição, poderia se
chegar a um impasse em que nenhuma parte admitisse o resultado. Seria essencial, em suma, o
acompanhamento por um grupo
de observadores internacionais
isentos.
Dada a derrota de Bush nas pesquisas de opinião no resto do
mundo, podem ser difíceis de
achar.
Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, foi professora titular da USP e leciona na Universidade de Chicago
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