São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

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ÁSIA

Religiões banidas pelos comunistas usam métodos violentos para conter avanço de igrejas rivais na zona rural da China

Seitas chinesas disputam fiéis à força


A mensagem era direta: "se aderíssemos à seita, Deus nos protegeria; se não, morreríamos"


JOSEPH KAHN
DO "NEW YORK TIMES"

Kuang Yuexia e seu marido, Cai Defu, se consideram bons cristãos. Lêem a Bíblia toda noite. Quando seus filhos se comportam mal, os tratam calmamente. Não praguejam e não mentem.
Mas quando Zhang Chengli, um vizinho, começou a perturbá-los no ano passado, pedindo que abandonassem sua seita e se unissem à dele, a situação pareceu um teste de intensidade satânica. Ele subia no muro de seu jardim, os emboscava nos campos e chegou a despertá-los depois da meia-noite com gritos frenéticos pedindo que se convertessem antes que Jesus chegasse em seu segundo advento e os enviasse ao inferno.
Kuang jogou água gelada no vizinho, Cai o socou. Mas Zhang persistiu por meses, até que a seita do casal interferiu e deteve de vez seu esforço de conversão.
O cadáver de Zhang -com os olhos, orelhas e nariz arrancados- foi localizado à beira de uma estrada a cerca de 500 quilômetros dessa cidade rural na Província de Jilin, nordeste da China. A polícia deteve Cai e membros de sua seita. Um deles morreu sob custódia das autoridades, naquilo que colegas detentos descrevem como sessão de tortura.
A crescente riqueza material da China não chegou ao campo, que abriga dois terços da população do país. Mas existe um mercado florescente de seitas e cultos competindo por fiéis. Isso vem alarmando as autoridades, que não conseguem determinar o que mais leva os camponeses a se voltarem contra o domínio comunista, se a difusão da religião ou a repressão sistemática a ela.
O vazio espiritual deixado pela morte da ideologia comunista está sendo preenchido pela religião, e a subclasse rural é a mais desesperada por salvação. A economia rural vem crescendo de maneira relativamente lenta. A corrupção e o colapso do sistema de saúde estatal e dos demais serviços sociais têm efeitos agudos.
Mas as igrejas sancionadas pelo governo operam principalmente nas cidades, onde podem ser vigiadas de perto. As cinco religiões oficialmente reconhecidas -budismo, taoísmo, islamismo, catolicismo e protestantismo- não podem se promover ou expandir com facilidade. O objetivo parece ser impedir que qualquer uma delas adquira influência semelhante à do Partido Comunista.
As autoridades dificultaram tanto a operação das igrejas estabelecidas que muitos dos camponeses chineses se voltaram para movimentos religiosos clandestinos e muitas vezes heterodoxos. Líderes religiosos carismáticos denunciam as igrejas sancionadas pelo Estado. Prometem cura, em partes do país onde o governo abandonou toda responsabilidade pela saúde pública. Também prometem salvação diante do apocalipse iminente, e exigem dinheiro, lealdade e sigilo estrito de seus membros.
A Três Graus de Servos, uma seita cristã banida que alega possuir milhões de seguidores, conquistou espaço em Huaide e outras cidades setentrionais após mais de uma década de proselitismo. Atraiu camponeses como Yu Xiaoping, bem como seu vizinho, Kuang, que eram fiéis das igrejas autorizadas pelo governo. Sua rede clandestina oferece serviços espirituais e sociais às aldeias isoladas.
Mas atraiu competição na forma da seita Relâmpago do Oriente, rival acirrada, que tentou converter Yu, Kuang e outros. As duas seitas se enfrentaram em confrontos violentos. Ambas se tornaram alvo de repressão policial.
Xu Shuangfu, o fundador itinerante da Três Graus de Servos, que alega ter poderes divinos, foi detido no trimestre passado em companhia de dezenas de associados. Xu é suspeito de ter ordenado a execução de inimigos religiosos, disseram policiais.
Mas esses esforços não conseguiram deter a difusão das seitas clandestinas, cuja legitimidade está diretamente relacionada à pressão do governo contra elas.
Yu Xiaoping, fazendeira e vendedora em uma loja de Huaide, era atéia na juventude, mas foi batizada em uma igreja protestante autorizada cerca de uma década atrás. Logo começou a receber convites de novos amigos para participar de cultos privados, onde pastores visitantes criticavam a igreja autorizada pelo governo que ela freqüentava.
Um deles fez críticas veementes às igrejas autorizadas, dizendo que enfatizavam interpretações antigas e literais da Bíblia, em lugar de adaptarem sua leitura do texto sagrado aos tempos modernos. Ele instou Yu a considerar uma alternativa que, segundo ele, trazia à vida os ensinamentos de Jesus: a Três Graus de Servos.
Xu Shuangfu é um empresário da religião. Tem cerca de 60 anos, fundou a Três Graus de Servos na Província de Henan nos anos 80 e cuidou de seu crescimento.
A hierarquia da seita, segundo Xu, se baseia no tema da trindade, presente nos evangelhos. Xu ocupa o grau mais elevado e afirma que, como Moisés, fala com Deus.
A seita desempenhou papel central na vida de Yu, mais ou menos da mesma maneira como o Partido Comunista no passado moldava as pessoas segundo doutrinas maoístas e marxistas.
Yu se reportava a uma "colega obreira" na Três Graus de Servos: uma mulher conhecida pelo codinome Xing Zhi, ou Aspirações Afortunadas. Xing Zhi coordenava sessões de oração, recolhia doações e ensinava a Yu o que vestir, o que comer e quando acordar de manhã. Fez com que Yu formasse dupla com outro de seus discípulos, Zhang Qinghai. Yu e Zhang liam a Bíblia juntos, discutiam suas metas e acabaram se apaixonando. Casaram-se seis meses depois de se conhecerem.
Já a seita Relâmpago do Oriente foi fundada em 1990, por uma mulher cujo sobrenome é Deng e que alega ser Jesus Cristo retornado. Recruta principalmente fiéis de outras seitas e freqüentemente emprega táticas que incluem espionagem, seqüestros e lavagem cerebral, de acordo com duas pessoas que declaram ter sido detidas pelo grupo contra sua vontade.
As autoridades proibiram a Relâmpago do Oriente anos atrás. Mas a seita se expandiu e de acordo com estimativas estrangeiras se tornou o maior grupo religioso clandestino da China.
Em Huaide, como em outras cidades de alta penetração religiosa clandestina na região norte, a Relâmpago do Oriente toma por alvo a principal força religiosa local, a Três Graus de Servos. Em 2003, a Relâmpago do Oriente recrutou alguns membros em Huaide. Eles receberam cotas de conversões a cumprir, e um cronograma: salvar o máximo possível de almas antes que a mulher Jesus exterminasse os incréus.
Yu e seu marido foram abordados por dois ex-membros de sua seita, que se haviam convertido. Receberam uma versão personalizada da Bíblia e um livro de hinos. Os seguidores da Relâmpago do Oriente voltaram a procurá-los com freqüência, para persuadi-los quanto a uma conversão.
"Se você não dissesse sim a uma pessoa, mandavam outra, como mensageiros do diabo", diz Yu.
Zhang Chengli, fazendeiro local e membro da Relâmpago do Oriente, liderava a equipe que tentou converter Kuang e Cai. Ele os espreitava em casa e nos campos. E a mensagem que transmitia era muito direta:
"Ele nos disse que, se aderíssemos à Relâmpago, Deus nos protegeria", conta Kuang. "Mas, se não o fizéssemos, morreríamos."
Informada da campanha de Zhang, Xing Zhi, coordenadora-chefe da Três Graus de Servos em Huaide, tomou medidas decisivas. Zhang foi encontrado morto sem orelhas, olhos e nariz, marca registrada dos assassinatos cometidos pela Três Graus de Servos.

Tradução de Paulo Migliacci


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