São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AMÉRICA LATINA

Para Marta Lagos (Latinobarómetro), discurso pouco crível e equívoco sobre democracia resultam em má avaliação

Líderes latino-americanos frustram eleitor

OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

É tarefa quase impossível tirar conclusões gerais sobre os diferentes processos políticos da América Latina, mas, segundo a pesquisadora chilena Marta Lagos, há uma percepção majoritária entre as populações da região: a de que seus governantes da era democrática não têm poder para lidar com as expectativas criadas e alimentadas por eles mesmos.
"O discurso pouco crível dos políticos, associado à sensação de dispersão do poder, explica por que muitos governos estão tão mal avaliados", diz Lagos, diretora-executiva do Latinobarómetro, sediado em Santiago.
O projeto, fundado em 1995 nos moldes de uma iniciativa semelhante da União Européia, promove pesquisas de opinião anuais em 17 países latino-americanos e tem sido um importante medidor do apoio à democracia na região.
Segundo Lagos, criou-se um falso vínculo entre democracia e desenvolvimento econômico. "Precisamos trazer a democracia de volta ao que ela é: um sistema político que privilegia a paz e o entendimento e a liberdade", diz.
A pesquisadora esteve no Brasil na primeira quinzena de março para um seminário sobre democracia na América Latina promovido pelo Instituto Fernand Braudel e a Faap, em São Paulo. Leia entrevista concedida à Folha.

Folha - Há muitas diferenças no cenário político da América Latina. Mas parece haver uma coisa que é comum a vários países: a percepção das populações de que os governos dos últimos 15 anos ou 20 anos, justamente o período de redemocratização de boa parte da região, não conseguiram melhorar a vida das pessoas. Isso é correto? Marta Lagos - A percepção majoritária das populações é a de que os governos perderam o poder para lidar com as expectativas. Essa é a grande desilusão com a política. As pessoas acham que os presidentes ou os políticos em geral não têm poder institucional, nem legitimidade ou recursos para mudar sua vida. Logo, são irrelevantes. Há outros agentes, como as empresas privadas, o mundo globalizado e os mercados financeiros que disputam poder com os governantes. O problema é que os políticos não têm pudor em prometer soluções. Esse discurso pouco crível, associado à sensação de dispersão do poder, explica por que os governos estão tão mal avaliados.

Folha - É possível, por meio de pesquisas, detectar por que isso aconteceu e como seria possível superar essa percepção?
Lagos -
Sempre cito a campanha do presidente argentino Raúl Alfonsín, nos anos 80, que tinha o lema "Com a democracia se come, com a democracia se vive, com a democracia se trabalha". Esse vínculo entre democracia e economia é falso. A democracia é um sistema político que privilegia a paz, o entendimento e a liberdade, mas não necessariamente assegura a prosperidade. Quando percorremos a América Latina, é impressionante ver chanceleres, ministros da Fazenda, presidentes dizendo "a democracia é um copo de leite". Ela foi vendida de forma muito populista pelos políticos. E a população comprou essa concepção. Atualmente, os políticos sofrem as conseqüências desse equívoco. Precisamos trazer a democracia de volta ao que ela é.

Folha - Então não aprendemos muito. Na última eleição presidencial no Brasil, os candidatos prometeram milhões de empregos, acabar com a fome. Quão urgente é aliar democracia com crescimento econômico?
Lagos -
A democracia requer uma legitimidade própria, que não dependa do desenvolvimento econômico. Os políticos que a venderam como um "copo de leite" prejudicaram o processo de construção de nossas democracias. A América Latina precisa desenvolver os bens políticos que sustentam esse sistema: obedecer e aplicar as leis, pagar impostos e gastá-los bem, exercer e garantir os direitos dos cidadãos. Na nossa região, as pessoas não são cidadãs em toda a dimensão do que isso significa. Sem cidadania, as instituições democráticas -como o sistema judicial, o parlamento, os partidos políticos- ficam sem legitimidade. Além disso, as transições na América Latina, e também no Brasil, não olharam o suficiente para as reformas políticas que eram necessárias para desenvolver e consolidar a democracia. Fixaram-se nas reformas econômicas, que foram superdimensionadas. Hoje, sofremos as conseqüências de não termos uma sólida base de cultura cívica que permita que as instituições resistam a crises econômicas. O desempenho econômico passa a ser o único elemento de julgamento dos governos. E as nossas democracias estão sem instrumentos para se defender.

Folha - Qual é a sua avaliação em relação aos protestos que ocorreram ou estão ocorrendo em vários países contra seus respectivos governos? Houve o caso da Argentina e, mais recentemente, da Bolívia e da Venezuela.
Lagos -
Temos visto, na América Latina, as explosões das ruas, como foi o caso da Argentina, onde a população expulsou um presidente. Os argentinos exerceram seu direito. Ainda que pela via informal, porque os canais institucionais não permitiam. Ainda que tenha resultado em mais crise a curto prazo, foi uma demonstração de que a Argentina tem uma cidadania democraticamente sólida. Pode ter sido ruim para o governo que foi derrubado, para a economia, mas não foi ruim como expressão da cultura cívica e para o desenvolvimento da democracia. Na Venezuela, também há uma verdadeira revolução participativa. Tanto os defensores quanto os opositores do governo estão saindo às ruas para defender suas opiniões. Isso mostra que as instituições não estão cumprindo com seu papel, pois não têm sido capazes de interpretar as diferenças e de solucioná-las sem apelar para a violência.

Folha - Então o clima de conflito na Venezuela não é um retrocesso para a democracia?
Lagos -
Os venezuelanos estão defendendo, cada qual, seu conceito de democracia. Isso não é ruim. É bem possível que, depois que a Venezuela saia dessa crise institucional, a democracia no país fique mais sólida. Segundo nossas pesquisas, 76% dos venezuelanos acreditam no sistema democrático, um dos percentuais mais altos da região. Ao mesmo tempo, é o país que passa pela maior crise institucional. Isso não é uma contradição. Também não vejo como algo negativo, mas como uma boa notícia. Foi assim que as democracias dos países industrializados foram construídas. Foram necessários cem anos de protestos sociais. É romântico, ingênuo e apressado pensar que é possível chegar a uma democracia consolidada sem conflitos sociais. E é equivocado dizer que esse processo fracassou ou está fracassando na América Latina, porque ele ainda não acabou. Dez, 15 anos não são nada na história.

Folha - Para as elites políticas, econômicas e intelectuais é mais fácil ser paciente. Para os mais pobres, há urgência.
Lagos -
A impaciência da população tem a ver com uma expectativa desmedida. Os povos latino-americanos estão acostumados a ser pobres. São 500 anos de pobreza. O problema não é apenas a pobreza. Os políticos prometeram uma luz no final do túnel com uma velocidade que não aconteceu. Há uma pressão desmedida sobre a democracia em relação à sua real evolução. Que político teria a coragem de dizer às pessoas que a solução de nossos problemas só virá daqui a uns 30 ou 40 anos?

Folha - A sra. teme pela democracia na América Latina?
Lagos -
De forma geral, não. Mas é preciso analisar a situação em cada país. O Paraguai, por exemplo, é extremamente antidemocrático e deve demorar muito mais tempo para atingir um patamar razoável. Nos outros países, a grosso modo, há ameaça de instabilidade social, há falta de integração social, mas não vejo uma ameaça à democracia. Porque há algo em comum à maioria dos latino-americanos: a percepção de que não se pode ser ator no mundo de hoje sem democracia. A mensagem enviada pela prosperidade das democracias industrializadas é tão forte que o sistema democrático é hoje uma condição quase imposta pelo mundo globalizado.

Folha - Nesses dez anos realizando pesquisas na América latina, o que a sra. descobriu de mais interessante na percepção das populações da região?
Lagos -
Diria que o mais interessante é comprovar que as populações são sábias. Apesar de sua ignorância, do baixo nível educacional, das dificuldades econômicas, as pessoas acabam tendo uma opinião muito realista e concreta dos fenômenos. Não estamos diante de uma população iludida, romântica, mas diante de pessoas que têm uma opinião a respeito de sua situação econômica, política e social e sabem quais são suas expectativas de acordo com sua posição social. É falso que a América Latina viva ilusões. Quem vive ilusões são as elites, mas não a população. Ela é bastante realista. As pessoas sabem muito mais do que pensamos que sabem.


Texto Anterior: Ásia: Após megaprotesto, presidente de Taiwan já admite recontar votos
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.