São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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ARTIGO

O racista mascarado

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA O "EL PAÍS"

"O melhor índio é o índio morto." "O melhor negro é o escravo negro." "A ameaça amarela." "A ameaça vermelha." O puritanismo que está à base da cultura wasp (branca, anglo-saxã e protestante) dos EUA às vezes se manifesta em cores chamativas. Às que assinalei acima agora se soma, com o vigor das idéias simplistas que eximem aquele que as manifesta da necessidade de pensar, "o perigo moreno".
Seu proponente é o professor Samuel P. Huntington, incansável voz a lançar alarmes sobre os perigos que "o outro" representa para a alma do alicerce -branco, protestante e anglo-saxão- dos Estados Unidos. O fato de que existiu (e existe) uma "América" (pois Huntington identifica os EUA com o nome de todo um continente) indígena anterior à colonização européia não o preocupa. Não interessa a ele que, além da anglo-América, existe uma "América" francesa anterior (a Louisiana) e até mesmo russa (o Alasca).
A preocupação é a América hispânica, a de Rubén Darío, aquela que fala espanhol e acredita em Deus. É esse o perigo indispensável para uma nação que, para ser, requer um perigo externo identificável. Moby Dick, a baleia branca, é símbolo dessa atitude, que, felizmente, não é compartilhada por todos os norte-americanos, incluindo John Quincy Adams, o sexto presidente dos EUA, que advertiu seu país: "Não saiamos ao mundo em busca de monstros a destruir".
Em seu "Choque de Civilizações", Huntington encontrou seu monstro externo necessário (depois de desaparecida a URSS e o "perigo vermelho") num islã disposto a atacar as fronteiras do Ocidente. O islã não quer invadir o Ocidente. Desde a Argélia até o Irã, o islã está vivendo seu próprio choque cultural e político entre conservadores e liberais islâmicos. É um choque vertical, em profundidade, e não horizontal, em expansão.

O explorador americano
A nova cruzada de Huntington se volta contra o México e os mexicanos que vivem no país do norte, trabalham nele e o enriquecem. Para Huntington, os mexicanos não vivem -invadem-; não trabalham -exploram-, e não enriquecem -empobrecem, porque a pobreza faz parte de sua própria natureza. Tudo isso, acrescido ao número de mexicanos e latino-americanos nos EUA, representaria uma ameaça à cultura que, para Huntington, se atreve, sim, a afirmar seu nome: a anglo-América protestante e anglófona, de raça branca.
Os mexicanos invadem os EUA? Não -eles obedecem às leis do mercado de trabalho. Existe oferta de mão-de-obra mexicana porque existe demanda de mão-de-obra nos Estados Unidos. Se algum dia houvesse emprego pleno no México, os EUA teriam de procurar em outro país a mão-de-obra barata para trabalhos que os brancos, saxões e protestantes, para descrevê-los como faz Huntington, não desejam fazer, porque já passaram para estágios superiores de emprego, porque envelhecem, porque a economia dos EUA passou da era industrial à pós-industrial, tecnológica e informatizada.
Os mexicanos exploram os EUA? Segundo Huntington, explorando ele próprio a infame Proposta 187 da Califórnia, que pretendia excluir os filhos de imigrantes da educação e seus pais de qualquer benefício médico ou social, os mexicanos constituem um ônus injusto para a economia dos EUA: recebem mais do que dão.
É mentira. A Califórnia destina US$ 1 bilhão por ano para a educação dos filhos de imigrantes. Mas, se não o fizesse -atenção, Schwarzenegger-, o Estado perderia US$ 16 bilhões por ano em ajuda federal à educação. E o trabalhador migrante mexicano paga US$ 29 bilhões a mais em impostos, todos os anos, do que o que recebe em serviços.
Longe de ser o lastro empobrecedor que Huntington presume, o imigrante mexicano gera riqueza ao nível mais baixo, mas também ao mais alto. Ao nível da mão-de-obra mais humilde, sua expulsão seria desastrosa para os EUA. John Kenneth Galbraith (o norte-americano que Huntington não pode ser) escreve: "Se todos os trabalhadores sem documentos nos EUA fossem expulsos do país, o efeito sobre a economia norte-americana ... seria pouco menos do que desastroso. ... Frutas e legumes na Flórida, no Texas e na Califórnia não seriam colhidos. Os alimentos subiriam de preço de maneira espetacular. Os mexicanos querem vir aos EUA, são necessários e aumentam visivelmente nosso bem-estar" ("A Natureza da Pobreza de Massas").
No nível mais alto, o migrante hispânico, nos diz Gregory Rodríguez, da Universidade Pepperdine, tem o maior número de assalariados por família entre qualquer grupo étnico, assim como a maior coesão familiar. Na segunda ou terceira geração, 55% dos hispânicos possuem casa própria, contra 71% dos brancos e 44% dos negros.
Acrescento aos dados do professor Rodríguez que apenas no Condado de Los Angeles o número de empresas criadas por migrantes hispânicos saltou de 57 mil, em 1987, para 210 mil no ano passado. E a economia hispano-americana nos EUA gera quase US$ 400 bilhões -mais do que o PIB do México.
Exploramos ou contribuímos, senhor Huntington?

Balcanizador
Segundo Huntington, a quantidade e os hábitos dos migrantes mexicanos vão acabar por balcanizar os EUA. A unidade norte-americana absorveu o imigrante europeu (incluindo judeus e árabes, não mencionados seletivamente por Huntington) porque o imigrante de épocas passadas, como Chaplin no filme homônimo, vinha da Europa, atravessava o mar, e, sendo branco e cristão (e os judeus, os árabes e, mais recentemente, os vietnamitas, os chineses, os japoneses?), se assimilava rapidamente à cultura anglo-saxã, esquecendo sua língua e seus costumes nativos, o que deve surpreender os italianos de ""O Poderoso Chefão".
Não. Apenas os mexicanos e os hispânicos, de modo geral, somos os separatistas, os conspiradores que queremos criar uma nação à parte, de língua hispânica.
Se virássemos essa torta do avesso, perceberíamos que a língua ocidental mais falada é o inglês. Será que Huntington acha que esse fato revela uma silenciosa invasão norte-americana do mundo inteiro? Estigmatizar a língua castelhana como fator de divisão praticamente subversiva revela, mais do que qualquer outra coisa, o ânimo racista do professor Huntington.
Falar uma segunda (ou terceira ou quarta) língua é sinal de cultura em todo o mundo, menos, ao que parece, no Éden unilíngüe inventado por Huntington. Os cidadãos de língua espanhola nos EUA não formam blocos impermeáveis ou agressivos. Eles se adaptam rapidamente ao inglês e, às vezes, conservam o castelhano, enriquecendo o aceito caráter multiétnico e multicultural dos Estados Unidos. Em todo caso, o monolingüismo é uma doença curável. Muitos latino-americanos falamos o inglês, sem medo de sermos contagiados. Huntington apresenta os EUA como um gigante temeroso diante do impacto do espanhol. É a tática do medo do outro, tão favorecida pelas mentalidades fascistas.
Não: o mexicano e o hispânico, em geral, contribuem para a riqueza dos EUA, dão mais do que recebem, desejam integrar-se à nação norte-americana, atenuam o isolacionismo cultural que conduz os governos de Washington a tantos desastres internacionais, propõem uma diversificação política à qual contribuíram e contribuem afro-americanos, os ""nativos" indígenas, irlandeses e poloneses, russos e italianos, suecos e alemães, árabes e judeus.

O perigo mexicano
Huntington atualiza um racismo antimexicano superado que conheci de sobra quando era jovem, estudando na capital norte-americana. ""The Volume Library", uma enciclopédia em um só volume publicada em Nova York em 1928, dizia textualmente: ""Uma das razões da pobreza no México é o predomínio de uma raça inferior". Hoje, o eleitor latino é cortejado em espanhol macarrônico por muitos candidatos, entre eles Al Gore e George W. Bush na eleição presidencial passada. É uma tática eleitoreira (como o é a proposta migratória aventada por Bush algumas semanas atrás).
Mas para nós, mexicanos, espanhóis e hispano-americanos, a língua é fator de orgulho e de unidade. De fato, a falamos 500 milhões de homens e mulheres em todo o mundo.
Pode ser que nos una justamente aquilo que Huntington acha que provoca desunião: o multiculturalismo da língua castelhana. Os hispano-americanos somos, ao mesmo tempo que hispanófonos, indo-europeus e afro-americanos. E descendemos da Espanha, incompreensível sem sua multiplicidade racial e lingüística celtibérica, grega, fenícia, romana, árabe, judaica e goda.
Com tudo isso, ganhamos, não perdemos. Quem perde é Huntington, isolado em sua parcela imaginária de pureza racista anglófona, branca e protestante -embora sua generosidade se estenda, graciosamente, ao ""cristianismo".
Pergunta ociosa: qual será o próximo Moby Dick do capitão Ahab Huntington?


Carlos Fuentes é escritor mexicano
Tradução de Clara Allain


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