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ARTIGO
O racista mascarado
CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA O "EL PAÍS"
"O melhor índio é o índio morto." "O melhor negro é o escravo
negro." "A ameaça amarela." "A
ameaça vermelha." O puritanismo que está à base da cultura
wasp (branca, anglo-saxã e protestante) dos EUA às vezes se manifesta em cores chamativas. Às
que assinalei acima agora se soma, com o vigor das idéias simplistas que eximem aquele que as
manifesta da necessidade de pensar, "o perigo moreno".
Seu proponente é o professor
Samuel P. Huntington, incansável
voz a lançar alarmes sobre os perigos que "o outro" representa para
a alma do alicerce -branco, protestante e anglo-saxão- dos Estados Unidos. O fato de que existiu (e existe) uma "América"
(pois Huntington identifica os
EUA com o nome de todo um
continente) indígena anterior à
colonização européia não o preocupa. Não interessa a ele que,
além da anglo-América, existe
uma "América" francesa anterior
(a Louisiana) e até mesmo russa
(o Alasca).
A preocupação é a América hispânica, a de Rubén Darío, aquela
que fala espanhol e acredita em
Deus. É esse o perigo indispensável para uma nação que, para ser,
requer um perigo externo identificável. Moby Dick, a baleia branca, é símbolo dessa atitude, que,
felizmente, não é compartilhada
por todos os norte-americanos,
incluindo John Quincy Adams, o
sexto presidente dos EUA, que
advertiu seu país: "Não saiamos
ao mundo em busca de monstros
a destruir".
Em seu "Choque de Civilizações", Huntington encontrou seu
monstro externo necessário (depois de desaparecida a URSS e o
"perigo vermelho") num islã disposto a atacar as fronteiras do
Ocidente. O islã não quer invadir
o Ocidente. Desde a Argélia até o
Irã, o islã está vivendo seu próprio
choque cultural e político entre
conservadores e liberais islâmicos. É um choque vertical, em
profundidade, e não horizontal,
em expansão.
O explorador americano
A nova cruzada de Huntington
se volta contra o México e os mexicanos que vivem no país do norte, trabalham nele e o enriquecem. Para Huntington, os mexicanos não vivem -invadem-;
não trabalham -exploram-, e
não enriquecem -empobrecem,
porque a pobreza faz parte de sua
própria natureza. Tudo isso,
acrescido ao número de mexicanos e latino-americanos nos EUA,
representaria uma ameaça à cultura que, para Huntington, se
atreve, sim, a afirmar seu nome: a
anglo-América protestante e anglófona, de raça branca.
Os mexicanos invadem os EUA?
Não -eles obedecem às leis do
mercado de trabalho. Existe oferta de mão-de-obra mexicana porque existe demanda de mão-de-obra nos Estados Unidos. Se algum dia houvesse emprego pleno
no México, os EUA teriam de procurar em outro país a mão-de-obra barata para trabalhos que os
brancos, saxões e protestantes,
para descrevê-los como faz Huntington, não desejam fazer, porque já passaram para estágios superiores de emprego, porque envelhecem, porque a economia dos
EUA passou da era industrial à
pós-industrial, tecnológica e informatizada.
Os mexicanos exploram os
EUA? Segundo Huntington, explorando ele próprio a infame
Proposta 187 da Califórnia, que
pretendia excluir os filhos de imigrantes da educação e seus pais de
qualquer benefício médico ou social, os mexicanos constituem um
ônus injusto para a economia dos
EUA: recebem mais do que dão.
É mentira. A Califórnia destina
US$ 1 bilhão por ano para a educação dos filhos de imigrantes.
Mas, se não o fizesse -atenção,
Schwarzenegger-, o Estado perderia US$ 16 bilhões por ano em
ajuda federal à educação. E o trabalhador migrante mexicano paga US$ 29 bilhões a mais em impostos, todos os anos, do que o
que recebe em serviços.
Longe de ser o lastro empobrecedor que Huntington presume, o
imigrante mexicano gera riqueza
ao nível mais baixo, mas também
ao mais alto. Ao nível da mão-de-obra mais humilde, sua expulsão
seria desastrosa para os EUA.
John Kenneth Galbraith (o norte-americano que Huntington não
pode ser) escreve: "Se todos os
trabalhadores sem documentos
nos EUA fossem expulsos do país,
o efeito sobre a economia norte-americana ... seria pouco menos
do que desastroso. ... Frutas e legumes na Flórida, no Texas e na
Califórnia não seriam colhidos.
Os alimentos subiriam de preço
de maneira espetacular. Os mexicanos querem vir aos EUA, são
necessários e aumentam visivelmente nosso bem-estar" ("A Natureza da Pobreza de
Massas").
No nível mais alto, o migrante hispânico, nos diz
Gregory Rodríguez, da Universidade Pepperdine,
tem o maior número de assalariados por família
entre qualquer
grupo étnico, assim como a maior
coesão familiar.
Na segunda ou
terceira geração,
55% dos hispânicos possuem casa
própria, contra
71% dos brancos e
44% dos negros.
Acrescento aos
dados do professor Rodríguez
que apenas no Condado de Los
Angeles o número de empresas
criadas por migrantes hispânicos
saltou de 57 mil, em 1987, para 210
mil no ano passado. E a economia
hispano-americana nos EUA gera
quase US$ 400 bilhões -mais do
que o PIB do México.
Exploramos ou contribuímos,
senhor Huntington?
Balcanizador
Segundo Huntington, a quantidade e os hábitos dos migrantes
mexicanos vão
acabar por balcanizar os EUA. A
unidade norte-americana absorveu o imigrante
europeu (incluindo judeus e árabes, não mencionados seletivamente por Huntington) porque o
imigrante de épocas passadas, como Chaplin no filme homônimo,
vinha da Europa,
atravessava o mar,
e, sendo branco e
cristão (e os judeus, os árabes e,
mais recentemente, os vietnamitas,
os chineses, os japoneses?), se assimilava rapidamente à cultura anglo-saxã, esquecendo sua língua e
seus costumes nativos, o que deve
surpreender os italianos de ""O
Poderoso Chefão".
Não. Apenas os mexicanos e os
hispânicos, de modo geral, somos
os separatistas, os conspiradores
que queremos criar uma nação à
parte, de língua hispânica.
Se virássemos essa torta do
avesso, perceberíamos que a língua ocidental mais falada é o inglês. Será que Huntington acha
que esse fato revela uma silenciosa invasão norte-americana do
mundo inteiro? Estigmatizar a
língua castelhana como fator de
divisão praticamente subversiva
revela, mais do que qualquer outra coisa, o ânimo racista do professor Huntington.
Falar uma segunda (ou terceira
ou quarta) língua é sinal de cultura em todo o mundo, menos, ao
que parece, no Éden unilíngüe inventado por Huntington. Os cidadãos de língua espanhola nos
EUA não formam blocos impermeáveis ou agressivos. Eles se
adaptam rapidamente ao inglês e,
às vezes, conservam o castelhano,
enriquecendo o aceito caráter
multiétnico e multicultural dos
Estados Unidos. Em todo caso, o
monolingüismo é uma doença
curável. Muitos latino-americanos falamos o inglês, sem medo
de sermos contagiados. Huntington apresenta os EUA como um
gigante temeroso diante do impacto do espanhol. É a tática do
medo do outro, tão favorecida pelas mentalidades fascistas.
Não: o mexicano e o hispânico,
em geral, contribuem para a riqueza dos EUA, dão mais do que
recebem, desejam integrar-se à
nação norte-americana, atenuam
o isolacionismo cultural que conduz os governos de Washington a
tantos desastres internacionais,
propõem uma diversificação política à qual contribuíram e contribuem afro-americanos, os ""nativos" indígenas, irlandeses e poloneses, russos e italianos, suecos e
alemães, árabes e judeus.
O perigo mexicano
Huntington atualiza um racismo antimexicano superado que
conheci de sobra quando era jovem, estudando na capital norte-americana. ""The Volume Library", uma enciclopédia em um
só volume publicada em Nova
York em 1928, dizia textualmente:
""Uma das razões da pobreza no
México é o predomínio de uma
raça inferior". Hoje, o eleitor latino é cortejado em espanhol macarrônico por muitos candidatos,
entre eles Al Gore e George W.
Bush na eleição presidencial passada. É uma tática eleitoreira (como o é a proposta migratória
aventada por Bush algumas semanas atrás).
Mas para nós, mexicanos, espanhóis e hispano-americanos, a
língua é fator de orgulho e de unidade. De fato, a falamos 500 milhões de homens e mulheres em
todo o mundo.
Pode ser que nos una justamente aquilo que Huntington acha
que provoca desunião: o multiculturalismo da língua castelhana. Os hispano-americanos somos, ao mesmo tempo que hispanófonos, indo-europeus e afro-americanos. E descendemos da
Espanha, incompreensível sem
sua multiplicidade racial e lingüística celtibérica, grega, fenícia,
romana, árabe, judaica e goda.
Com tudo isso, ganhamos, não
perdemos. Quem perde é Huntington, isolado em sua parcela
imaginária de pureza racista anglófona, branca e protestante
-embora sua generosidade se
estenda, graciosamente, ao ""cristianismo".
Pergunta ociosa: qual será o
próximo Moby Dick do capitão
Ahab Huntington?
Carlos Fuentes é escritor mexicano
Tradução de Clara Allain
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