São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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POLÊMICA

Autor de "Choque de Civilizações" vê risco de o país se dividir em dois, ameaçando a cultura anglo-americana

Hispânicos ameaçam EUA, diz Huntington

FERNANDO CANZIAN
DE WASHINGTON

Em 1993, o escritor Samuel Huntington, 76, teorizou em "Choque de Civilizações" (um artigo depois transformado em livro) sobre os conflitos entre povos que a globalização provocaria. O 11 de Setembro teria confirmado suas previsões e lhe rendeu proeminência e público.
Agora, o professor da Universidade Harvard prevê um fulminante choque cultural no coração do império. Ele anuncia o fim do chamado "sonho americano".
Em nova obra com lançamento previsto para maio, o autor sustenta que a aceleração descontrolada da imigração hispânica nos EUA, principalmente mexicana, rachará o país.
Sua pergunta e aviso: "Os EUA continuarão sendo um país com um único idioma e uma cultura anglo-protestante? Ao ignorar essa questão, os americanos estão assumindo o risco de uma eventual divisão entre duas populações com duas culturas (anglo-americana e hispânica) e duas línguas (inglês e espanhol)".
Trechos de "Quem Somos: Desafios à Identidade Nacional Americana" foram publicados na edição corrente da revista "Foreign Policy", despertando polêmica imediata.
Para Huntington, os imigrantes hispânicos ameaçam "o núcleo da cultura anglo-protestante" norte-americana traduzida no respeito à lei, no trabalho duro e nos direitos humanos e civis.
O autor antecipa um país "fraturado" pela elevada taxa de natalidade dos hispânicos e por sua "incapacidade" de aprender os valores anglo-americanos e a língua inglesa.
Os hispânicos somam hoje cerca de 40 milhões de pessoas nos EUA, o maior grupo dentro de uma população total de 290 milhões. Mais de 60% do crescimento populacional do país é atualmente originado por novos imigrantes ou pelo nascimento de filhos de imigrantes -sendo hispânica a esmagadora maioria.
Huntington sustenta que, ao contrário de outras ondas migratórias, os hispânicos (principalmente os mexicanos) estão se fechando em comunidades e evitando interagir com os norte-americanos e seus valores.
"A tese não chega a ser chocante, pois a política de imigração americana é centrada no sucesso individual, sem qualquer estímulo ao aprendizado da língua ou de profissões, algo que já ocorre no Canadá e na Austrália", afirma John Keeley, diretor do Centro de Estudos de Imigração, órgão independente com maior autoridade no assunto nos EUA.
"O número atual de imigrantes no país sem educação e não especializados não tem precedentes. Isso, de fato, pode lançar as bases para um conflito futuro", diz Keeley, lembrando que os EUA têm hoje o dobro de imigrantes que tinham nos anos 80.
Daniel Drezner, professor de ciência política da Universidade de Chicago, questionou a tese em artigo citando dados do Censo norte-americano que mostram uma evolução da assimilação cultural por parte dos hispânicos.
Enquanto o inglês é a língua predominante nas residências de apenas 5% dos imigrantes de primeira geração, o percentual sobe a mais de 30% nos domicílios dos que já nasceram nos EUA e a 60% entre os de terceira geração.
A tese também sugeriria preconceito ao não contemplar o fato de os hispânicos talvez quererem manter suas referências culturais em casa e, até por falta de opção, não adotarem plenamente o estilo de "trabalho duro" atribuído aos anglo-americanos.
Na prática, quase todas as profissões pesadas, braçais e mal remuneradas nos EUA são exercidas hoje por imigrantes.
"A tese de Huntington é potencialmente danosa, pois pode ser usada para racionalizar e formar, sem bases reais, novas políticas antiimigrantes e antimexicanos", afirmou Andres Jimenez, diretor do Centro de Pesquisas de Política da Universidade da Califórnia, em carta à "Foreign Policy" contestando o artigo de Huntington.
No dia-a-dia, no entanto, a "fratura" vislumbrada por Huntington já é visível em termos geográficos e econômicos.
A grande maioria dos imigrantes legais e ilegais vivendo nos EUA hoje não tem empregos formais, planos de saúde, poupança ou casa própria.
Nessa situação socioeconômica, a maior parte vive cada vez mais em regiões específicas de centros urbanos onde o espanhol resiste em abrir espaço para o inglês, seja na fala ou na publicidade.
Mais de um quarto dos hispânicos vivendo nos EUA também é composto hoje de imigrantes ilegais, que chegam ao país a um ritmo de quase 500 mil ao ano, fato que ajuda a aprofundar a divisão.


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