São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006 |
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Historiador trata de ferida alemã 60 anos após a guerra
Jörg Friedrich fala à Folha dos ataques a civis e explica por que seu país levou décadas para falar do conflito mundial FOLHA - Como justificar a demora de 60 anos para que a historiografia alemã passasse a abordar as crueldades cometidas pelos aliados? JÖRG FRIEDRICH - O mesmo ocorreu com russos e judeus. Quem está saindo do inferno não gosta de olhar para trás. Olha-se para a reconstrução. O "milagre alemão" [altas taxas de crescimento nos anos 50] foi possível porque as pessoas não gastavam suas energias no luto. FOLHA - O sr. foi criado na ex-Alemanha Ocidental. Quais eram os sentimentos predominantes? FRIEDRICH - O sentimento era de que britânicos e americanos eram povos "amigos". Para solidificar o sentimento de paz, é preciso esquecer crueldades. A maior delas havia sido praticada pelos próprios alemães. Precisávamos esquecer tudo isso. FOLHA - E sobre o genocídio? FRIEDRICH - Sabíamos em nossos livros de escola que os nazistas haviam assassinado 6 milhões de judeus. Mas a palavra "holocausto" passou a ser usada por todos só nos anos 60. FOLHA - E na Alemanha Oriental? FRIEDRICH - Os livros didáticos mencionavam os bombardeios britânicos e americanos e mapas com as cidades destruídas. Já era um argumento contaminado pela Guerra Fria. FOLHA - Mas não havia também, na Alemanha Ocidental, um sentimento de culpa que gerou um tabu? FRIEDRICH - Quando menino, eu vivia cercado de ruínas. Mas isso era "natural". Nossos pais não falavam dos bombardeios. Professores, tampouco. Falava-se muito dos 12 milhões de alemães expulsos pelos soviéticos dos encraves germânicos da atual Polônia, uma maldade dos comunistas. Veja que a memória era bastante seletiva. FOLHA - E os historiadores? FRIEDRICH - Um historiador que quisesse fazer carreira numa universidade da Alemanha Ocidental evitaria pesquisar os bombardeios. Estaria trombando com tabus. Só agora os bombardeios puderam ser abordados com tranqüilidade. FOLHA - Muitos dizem que os aviões britânicos e americanos não tinham tecnologia para mirar com exatidão as instalações militares. E por isso ocorreu a carnificina de civis. FRIEDRICH - Os bombardeios se estenderam de 1940 a 1945. O grosso da morte de civis se concentrou no fim da guerra, entre fevereiro e maio de 1945. A ausência de tecnologia poderia ser evocada nos três primeiros anos. No período final, os britânicos perderam só oito aviões, quatro por acidente. Com o colapso iminente do Reich, não havia mais aviões a combater nem artilharia antiaérea. FOLHA - Mas Dresden, destruída em fevereiro de 1945, tinha grande contingente militar e era importante entroncamento ferroviário. FRIEDRICH - A estação ferroviária e os quartéis foram pouco atingidos. O alvo era a cidade. O objetivo era atingir a população civil, para afetar sua moral. FOLHA - Se os bombardeios não estimularam uma revolta dos alemães, por que prosseguir com eles? FRIEDRICH - Eu não teria uma resposta definitiva. Em fevereiro de 1944, o Exército Vermelho estava a apenas 50 km de Berlim. E os bombardeios aliados se intensificaram. É possível que quisessem dar um recado aos soviéticos. Stálin terminou a guerra com o que Hitler buscava: tecnologia européia e recursos naturais da Ásia. Mas soube que britânicos e americanos poderiam destruir qualquer cidade. É uma hipótese. FOLHA - Quem começou o bombardeio de civis?
FRIEDRICH - Foram os alemães.
Roosevelt, Hitler e Churchill
disseram que não bombardeariam alvos civis. Mas sabiam
que a crueldade era um fator
constitutivo da própria guerra. |
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