São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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ARTIGO

A estrutura das instituições internacionais precisa mudar

Premiê britânico defende reformas, como a do Conselho de Segurança, diante da interdependência e da necessidade de enfrentar conjuntamente os desafios

TONY BLAIR

É consenso que o mundo hoje se caracteriza pela interdependência. Mas ainda não tivemos tempo de pensar nas conseqüências, ou de compreender que o "livro de regras internacionais" tornou-se obsoleto.
A interdependência, ou o fato de uma crise num ponto isolado tornar-se generalizada, faz escárnio da visão tradicional de interesse nacional. As nações, mesmo as grandes e poderosas como os Estados Unidos, são afetadas profundamente e em velocidade recorde pelo que ocorre além de suas fronteiras.
Por que a imigração é hoje a pauta principal de políticas na Europa e nos Estados Unidos? Porque a globalização torna as migrações em massa uma realidade, e apenas o desenvolvimento global fará com que tal realidade seja manejável.
Por que a política energética também subiu rapidamente na lista de prioridades nacionais? Porque países como China e Índia têm que abastecer seu rápido desenvolvimento e devido à ameaça de mudanças climáticas. A solução é um arcabouço negociado internacionalmente para que as nações em desenvolvimento possam continuar crescendo, os países ricos, mantendo seu padrão de vida, e o meio ambiente, protegido.
Assim, não se pode hoje ter uma visão coerente dos interesses nacionais, sem uma visão coerente da comunidade internacional. Os desafios afetam todos, podendo ser combatidos efetivamente apenas de forma conjunta. Não podemos mais esperar para ver como os desafios globais evoluirão. Eles requerem resposta preventiva e não apenas reativa, baseada na precaução, não na certeza, e muitas vezes idealizada fora de nosso próprio território.
O terror combatido hoje no Reino Unido não se originou no país, embora em 7 de julho de 2005 tenham sido terroristas nascidos no país os responsáveis. A solução está em escolas e campos de treinamento e doutrinação a milhares de quilômetros de nosso país, assim como nas cidades do Reino Unido. A solução para as migrações em massa encontra-se em sua origem, e não nas nações que sentem as conseqüências.
Entretanto, uma ação conjunta não será acordada a menos que esteja baseada em valores comuns de liberdade, democracia, tolerância e justiça. Tais valores são universalmente reconhecidos por todas as nações, crenças e raças, embora não o sejam por todos os indivíduos. São valores que podem inspirar e unir. Precisamos de uma comunidade internacional que incorpore e aja para disseminar esses valores globais.
A agenda à nossa frente é enorme. E cada vez mais, há disparidade entre os desafios globais e os organismos internacionais para confrontá-los. Após a Segunda Guerra, percebeu-se que uma nova estrutura institucional internacional era necessária. Na nova era, no século 21, precisamos renová-la.
Em discurso na sexta-feira, apresentei sugestões para a necessária renovação. Em primeiro lugar, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, tem feito um trabalho extraordinário, sob circunstâncias quase impossíveis, merecendo apoio quanto a seu programa de reforma. No entanto, um Conselho de Segurança que tenha a França como membro permanente, mas não a Alemanha, o Reino Unido e não o Japão, a China e não a Índia, para não mencionar a ausência de representante da América Latina ou da África, não pode ser considerado legítimo hoje. Se preciso, busquemos um modelo para uma solução temporária que possa levar ao futuro arranjo permanente.
Deveríamos reforçar os poderes do secretário-geral da ONU de propor ações ao Conselho de Segurança para resolver antigas disputas e encorajá-lo a tomar tais iniciativas.
Em segundo lugar, há o Banco Mundial e o FMI. Como outros já disseram, existem argumentos em favor da fusão. O certo é que há fortes justificativas para a reforma, incluindo uma melhora radical do relacionamento com os países em desenvolvimento e maior representação dos emergentes.
Em terceiro lugar, há fortes argumentos para criar um sistema multilateral de "enriquecimento seguro" para a energia nuclear. A Agência Internacional de Energia Atômica supervisionaria um banco para garantir fonte segura de urânio aos países que usam energia nuclear, sem a necessidade de cada um ter seu ciclo.
Em quarto lugar, as reuniões do G8 têm sido feitas no formato G8 + 5. Isso deveria ser a norma. E, finalmente, é necessário criar um órgão da ONU para o ambiente à altura da importância desse assunto hoje.
Não subestimo a tarefa que é realizar tais mudanças. A criação de instituições multilaterais mais eficientes requer a renúncia por cada nação de parte da sua independência. As nações mais poderosas querem instituições multilaterais mais eficientes, mas apenas quando acham que tais instituições farão suas vontades. O que elas temem são instituições multilaterais eficientes que ajam de acordo com sua própria vontade. Mas se houver uma base compartilhada, com objetivos e propósitos comuns, os países, não importa quão poderosos, se beneficiarão de poder delegar problemas que não conseguem resolver sozinhos. Seus interesses nacionais serão alcançados pela ação comum eficiente.
Hoje, após os tumultos e desacordos dos últimos anos, há a oportunidade real de união visando o combate ao terrorismo, a garantia de um sistema financeiro global saudável, o fornecimento de energia limpa e segura e a resolução de antigas disputas. Entre estas, incluo o crucial progresso rumo à solução para o conflito entre Israel e palestinos baseado em dois Estados que convivam em paz.
Acredito também que todos se interessem em apoiar a democracia no Iraque. Não busco justificar a decisão original ou reiniciar antigas discussões, quero advogar por novo acordo que encerre a antiga disputa.
Três anos passaram desde que Saddam foi destituído, anos de discórdia e derramamento de sangue. Mas apesar do terror, um processo político democrático ganhou força. Visitei o novo governo em Bagdá, escolhido livremente pelos iraquianos. O que ouvi dos líderes não foram mensagens de discordância entre facções rivais, mas um discurso simples e unificado. Eles querem que o Iraque se torne um país democrático, que seu povo seja livre; querem aceitar as diferenças e celebrar a diversidade e que o Estado de Direito, não a violência, determine seu destino.
A guerra dividiu o mundo, mas a luta dos iraquianos em busca da democracia deveria uni-lo. Pode-se discordar da decisão original, pode-se acreditar que foram cometidos erros, mas se os iraquianos podem demonstrar sua fé na democracia ao votarem, não deveríamos demonstrar que também acreditamos apoiando-os?
Este deveria ser um momento de reconciliação não só para o Iraque como para toda a comunidade internacional, pois sua luta é uma luta mais abrangente. O objetivo do terrorismo no Iraque é destruir a democracia não só no próprio Iraque, mas os valores democráticos.
No momento em que afegãos votaram na primeira eleição de sua história, o mito de que a democracia era um conceito ocidental foi destruído. Nem todos os governos acreditam na liberdade, mas os povos, sim.
Em meus nove anos como primeiro-ministro, não me tornei mais cético sobre o idealismo. Simplesmente fiquei mais convencido de que a distinção entre uma política externa baseada em valores e uma baseada em interesses está errada. A globalização gera interdependência, e a interdependência cria a necessidade de valores comuns que a façam funcionar. Em outras palavras, o idealismo se converte na real politik.
Nossos valores são o que nos guiam, entretanto precisamos estar dispostos a pensar e agir de forma mais rápida em defesa desses valores. Preempção progressiva, se preferirem. Há uma agenda com tal objetivo, esperando para ser definida, capaz de unificar um mundo anteriormente dividido. E não haveria melhor hora para isso.
Nada disso eliminará os retrocessos, as frustrações, as inconsistências e hipocrisias que acompanham as tomadas de decisão no mundo real. Mas demonstra que o melhor do espírito humano, que sempre encorajou o progresso da humanidade, é também a maior esperança para o futuro mundial.


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