São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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Hollywood intensifica cooperação com CIA e Pentágono

SAMUEL BLUMENFELD
DO "LE MONDE"

Os filmes de guerra americanos, como "A Soma de Todos os Medos", em que terroristas explodem uma bomba nuclear, trazem à tona os laços estreitos -ainda mais desde 11 de setembro- existentes entre a indústria cinematográfica e as autoridades norte-americanas, preocupadas em melhorar a sua imagem.
Desde 11 de setembro, quase um terço dos filmes líderes de bilheteria nos EUA se enquadra no gênero guerra. "Falcão Negro em Perigo", de Ridley Scott, reconstituiu a fracassada intervenção americana na Somália. "We Were Soldiers", de Randall Wallace, retoma o tema da Guerra do Vietnã, e "A Soma de Todos os Medos", de Phil Alden Robinson, ressuscita o espectro de uma guerra nuclear. O cinema de guerra não vive um momento tão dinâmico desde os filmes sobre o Vietnã feitos em meados dos anos 1980 ("Platoon", "Hamburger Hill").
Esse retorno do gênero não se explica tanto pelo "efeito 11 de setembro" quanto pelo sucesso de "O Resgate do Soldado Ryan", de Steven Spielberg, lançado em 1998. Mas, como observa Jim Hoberman num artigo publicado em 28 de junho no "The Village Voice" e intitulado "Como Hollywood aprendeu a parar de se preocupar e passou a amar a bomba" (em referência ao subtítulo de "Dr. Fantástico"), nunca, desde a grande época dos filmes de guerra da era Reagan, como "Rambo", "Top Gun, Ases Indomáveis" e "Desaparecido em Ação", Hollywood pareceu estar tão próxima de Washington.
Há pouco pudemos ver o vice-presidente americano, Dick Cheney, ao lado do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, na estréia de "Falcão Negro", em Washington. Quando a estréia foi adiantada, em dezembro de 2001, para aproveitar o "efeito 11 de setembro", cópias do filme foram enviadas às bases norte-americanas no exterior. "We Were Soldiers" e "A Soma de Todos os Medos" tiveram direito ao mesmo tratamento oficial. O filme de Wallace foi exibido, em sessão reservada, a George W. Bush, Donald Rumsfeld, Condoleezza Rice e vários altos funcionários de Washington.
A estréia mundial de "A Soma" aconteceu em Washington. A Paramount fez questão de informar a imprensa sobre a ajuda excepcional que o filme recebeu da CIA (agência de inteligência) e do Pentágono (comando militar dos EUA). Em troca de um valor simbólico, os criadores do filme tiveram acesso a informações classificadas como "confidenciais".
A troca foi benéfica a ambos os lados. Os produtores de "A Soma" puderam conferir a seu filme um grau inédito de realismo, enquanto a CIA e o Pentágono, pelo fato de exercerem controle estreito sobre seu conteúdo, puderam utilizá-lo em seus esforços de recrutamento, num momento em que o serviço militar deixou de ser obrigatório, apesar de o país travar uma guerra no Afeganistão.
Essa lua-de-mel entre Hollywood e o Pentágono não é novidade. Ela faz parte de uma longa história relatada pelo historiador militar Lawrence D. Suid em seu livro "Guts and Glory : the Making of the American Military Image in Film" (University Press of Kentucky, 2002). Ele mostra no livro que os laços entre Hollywood e o Pentágono sempre foram estreitos e remontam a 1915, com "O Nascimento de uma nação", de D.W. Griffith, para o qual os engenheiros da academia militar de West Point contribuíram com apoio logístico para as sequências ambientadas durante a Guerra Civil Americana.
Essa aliança entre Hollywood e o Pentágono, porém, parecia impossível logo após 11 de setembro. Os estúdios de Hollywood fizeram questão de adiar o lançamento de produções suas em que apareciam terroristas, entre elas "Efeito Colateral", com Arnold Schwarzenegger. Eles engavetaram todos seus projetos que tratavam do tema, como "World War III", produzido por Jerry Bruckheimer ("Top Gun", "Pearl Harbor", "Falcão Negro"), no qual as cidades de San Diego e Seattle são destruídas por uma bomba nuclear, e "Nose Bleed", em que Jackie Chan deveria interpretar um lavador de carros que desmascara um complô para destruir o World Trade Center. Hollywood parecia disposta a dar a mão à palmatória depois de 11 de setembro, como que antecipando um castigo merecido. O "Los Angeles Times" observou que o gosto de Hollywood pelos filmes-catástrofe ou os que mostravam atos terroristas tinha simplesmente desaparecido. Um produtor da DreamWorks explicou que a época em que o estúdio produzia filmes como "O Pacificador" ou "Impacto Profundo" ficara para trás.
Mas o público discordou. A edição de 3 de outubro do ano passado do "Washington Post" chamava a atenção para o fato de que "Rambo" estava entre os títulos mais procurados nas videolocadoras. Em lugar de ser punida, Hollywood foi recrutada. Pouco depois de 11 de setembro, o Instituto de Tecnologias Criativas da Universidade do Sul da Califórnia, patrocinado pelo Pentágono, organizou diversas reuniões com roteiristas e diretores. O objetivo das reuniões, dirigidas pelo general Kenneth Bergquist, era imaginar possíveis roteiros de ataques terroristas e preparar uma eventual resposta.
Lawrence H. Suid conta como Washington sempre se aproxima de Hollywood em tempos de guerra, de maneira sistemática.
Assim, nos anos 1960, após o lançamento de "Limite de Segurança", de Sydney Lumet, "Dr. Fantástico", de Stanley Kubrick, e "Sete Dias em Maio", de John Frankenheimer, que ofereciam uma imagem crítica e irônica de Washington e do Pentágono, o general Curtis LeMay interveio com o produtor Sy Bartlett, da Universal, para que começasse a produzir um filme que iria glorificar a Força Aérea americana, com Rock Hudson.
A novidade, hoje, não está tanto no nível inédito de colaboração entre o Pentágono, a CIA e a indústria do cinema, mas na maneira como Washington parece estar elaborando sua estratégia de comunicação por causa de determinados filmes de Hollywood.
Assim, o secretário da Justiça, John Ashcroft, esperou até a segunda-feira após o segundo fim de semana em que "A Soma de Todos os Medos" estava em cartaz para anunciar a prisão do terrorista Abdullah al Mujahir, cujo nome verdadeiro é José Padilla. Ligado à Al Qaeda, ele planejava um atentado semelhante ao que acontece no filme de Phil Alden Robinson. Mais estranho ainda: John Ashcroft estava em Moscou no momento do anúncio, como que para fazer eco ao que acontece em "A Soma", em que a cooperação russo-americana salva o mundo do caos.
Será que, para saber se os EUA vão ou não intervir no Iraque, devemos ficar atentos ao calendário de lançamentos do cinema?


Tradução de Clara Allain


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