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ANÁLISE ARGENTINA
As duas lápides do líder peronista
Uma mostrará a recuperação do país de sua maior crise; a outra, a manipulação da mídia e dos índices oficiais
METADE MENOS
UM DA ARGENTINA
PEDE "QUE SE VAYAN"
OS KIRCHNER. A
OUTRA METADE
CHORARÁ O
CADÁVER, COM A
PAIXÃO COM QUE
VIVE SUA HISTÓRIA
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CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Néstor Carlos Kirchner assumiu, em 2002, uma Argentina devastada institucional,
econômica e socialmente,
além de animicamente derrotada, o que é perfeitamente
compreensível quando se
considera que o país estava
mergulhado na maior crise
de sua história, uma das
maiores de qualquer país que
não tenha passado por guerra ou catástrofe natural.
Cinco anos e meio depois,
entregou uma Argentina razoavelmente recuperada, tão
recuperada quanto é possível nessas tremendas circunstâncias, a ponto de ter
podido eleger seu sucessor-
no caso, sua sucessora, Cristina Fernández de Kirchner,
também sua mulher.
Esse seria o epitáfio factualmente correto para o ex-presidente. Mas epitáfios de
políticos raramente se baseiam apenas em fatos. Acabam sendo, inexoravelmente, uma mescla de fatos com
emoções. Se o político morto
é peronista, então, a carga
emocional acaba sendo predominante.
Vale para o peronismo o
que se diz da torcida do Boca
Juniors, o clube mais popular
do país: é metade mais um da
Argentina. No caso do peronismo, metade mais um dos
argentinos amam o peronismo apaixonadamente; a outra metade menos um o
odeia.
O túmulo de Kirchner, portanto, terá duas lápides, a do
amor e a do ódio.
Na do amor, estará escrito
que a Argentina saiu do mais
profundo período depressivo
de sua tumultuada história
econômica, para um crescimento médio de 8% ao ano;
deixou para trás um desemprego avassalador, na altura
de 21,5% da população economicamente ativa para a
metade dessa cifra; reduziu a
pobreza de inacreditáveis
49,7% para ainda altos 30%.
Estará também escrito que
o governo Kirchner saiu da
moratória graças a um acordo com a maior parte dos credores, quando 11 de cada 10
analistas liberais dizia que a
moratória seria o último prego no caixão da moribunda
Argentina.
Na lápide do ódio, aparecerá, acima de tudo, o assédio à mídia, que, embora tenha se tornado crítico na gestão de sua mulher e sucessora, é atribuído a ele, visto como poder nas sombras, não
apenas como marido, mas
também como presidente do
Partido Justicialista, nome
oficial do peronismo.
Aparecerá também, inexoravelmente, a manipulação
das estatísticas, que permitem mostrar, oficialmente,
uma inflação bem inferior à
real.
E ainda haverá menção às
suspeitas de enriquecimento
ilícito, até porque enriquecimento de fato houve, e o próprio casal presidencial não o
escondeu nas suas declarações de renda. Se foi ou não
ilícito, é uma questão em
aberto.
Para os democratas, não
apenas os peronistas, pesará
também o fato de os Kirchner
terem lutado para recuperar
a memória dos anos negros
da ditadura do período 1976-1983. Mas haverá peronistas
que lamentarão essa ação,
porque houve peronistas dos
dois lados da história dos
anos de chumbo.
Como é impossível ser
neutro em relação ao peronismo, a lápide preferida de
cada qual será ditada pelo
coração mais que pelos fatos.
O que não dá para negar é
que o casal Kirchner conseguiu recuperar animicamente uma Argentina que, para
derrubar o presidente eleito
anterior a eles (Fernando de
la Rúa, em 2001), saiu em
massa às ruas gritando "que
se vayan todos" (os políticos).
Hoje, pelo menos, a metade menos um da Argentina
só pede "que se vayan" os
Kirchner. A outra metade
chorará o cadáver, não com a
intensidade com que chorou
a morte de Juan Domingo Perón, o criador desse multifacetado e inesgotável peronismo, mas com toda a arrebatadora paixão com que vive sua
história.
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