|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A REVOLUÇÃO AOS 50 / BRASÍLIA E HAVANA
Cartas revelam relação com Brasil
Documentos do Itamaraty mostram diálogos em sintonia com momentos históricos das últimas décadas
Correspondência também serve de termômetro para a relação com EUA; em 1990, Fidel se disse aberto a rever dogmas por laços melhores
FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
Enquanto os regimes comunistas do Leste Europeu derretiam e a maior parceira de Cuba, a União Soviética, também,
Fidel Castro mandou dizer ao
Brasil que estava "firmemente
disposto a deixar para trás todos os dogmas", ansioso por
parcerias econômicas e políticas com o governo Fernando
Collor (1990-1992).
O emissário da mensagem foi
o então embaixador do Brasil
em Havana, Ítalo Zappa (1926-1997), que a remeteu em telegrama confidencial ao Itamaraty em fevereiro de 1990, um
mês antes da posse de Collor.
"Mais de uma vez, o próprio
presidente Fidel Castro, na expectativa e na ansiedade de iniciar o diálogo no mais alto nível
com o Brasil, antecipou-nos
sua firme disposição de deixar
para trás todos os dogmas", diz
o texto inédito "Cuba. Evolução
da Situação Interna. A difícil
estratégia de Fidel Castro e o
Brasil", consultado pela Folha
nos arquivos do Itamaraty.
Era um momento de inflexão. As correspondências diplomáticas mencionam as previsões que circulavam: o regime comunista na ilha acabaria
em meses. Faltava de trigo a rolos de telex, num clima de pré-guerra. Foi o mais próximo da
debacle a que chegou o regime
castrista que completará 50
anos na virada deste Ano Novo.
Neste meio século, as correspondências diplomáticas brasileiras são instantâneos da relação bilateral. Mostram gestões
do Brasil para salvar oponentes
do fuzilamento nos primeiros
anos da revolução, detalham o
temor da ameaça cubana pela
ditadura militar brasileira e são
termômetro da relação Brasília-Washington, marcando menor ou maior alinhamento.
Na série de telegramas de
análise entre 1989 e 1990, Zappa, amigo de Fidel e um dos
pais da diplomacia Sul-Sul,
queixava-se da ofensiva pela
capitulação iniciada pela Casa
Branca de George Bush (1989-1993). Ele culpava Bush por
impelir Cuba à tática "do ardor
revolucionário" da fidelidade
ao socialismo "como sinônimo
de independência nacional"
para permanecer "em guarda".
Zappa prevê a resistência de
Fidel, mesmo advertido de que
poderia levar a ilha ao holocausto. "Talvez ele tenha em
mente que, na obra e na biografia, o risco do holocausto pode
ser inevitável no caminho da
história." Foi o diplomata que
reabriu a embaixada em Havana e, em 1986, no governo Sarney, foi responsável por reatar
as relações entre Brasil e Cuba,
após 24 anos de rompimento.
Bush pai anunciava que lançaria à ilha, por balões aeroestáticos, o sinal da TV Martí, de
propaganda anticastrista, e fazia exercícios navais no Caribe
meses após invadir o Panamá.
A ofensiva foi também diplomática. Em novembro de 1989,
o Departamento de Estado enviou carta ao Itamaraty dizendo que o apoio de Brasília ao
debate sobre a volta de Cuba à
OEA (Organização dos Estados
Americanos) "levantaria uma
questão inoportuna nas excelentes relações bilaterais".
1990, 2008
Zappa queixa-se também da
crise econômica aguda dos países da América Latina, que os
impediam de fazer frente às
pressões americanas. "A esperança remanescente de Cuba é
a força instintiva que levará a
América Latina, mais cedo ou
mais tarde, à formação de um
bloco próprio", escreveu, no
embrião de um processo que
culminou há duas semanas,
com a entrada de Cuba no Grupo do Rio, em meio às mesmas
esperanças da ilha de que as cobranças latino-americanas por
mudanças na política de Washington surtam algum efeito.
No começo dos anos 90, como agora, o Brasil pregava o
"engajamento construtivo",
sem críticas públicas à repressão política na ilha, na crença
oficial de que o acolhimento na
América Latina e um movimento de "fim da política, psicológica ou não, de cerco" pelos
EUA poderiam levar a melhorias em direitos humanos.
Mas a abordagem não foi
consenso nesses 22 anos, embora a condenação do embargo
econômico a Cuba o tenha sido.
O então chanceler de Fernando
Henrique Cardoso (1994-2002), Luis Felipe Lampreia,
foi o único de seu escalão a encontrar dissidentes cubanos
depois que foram restabelecidas as relações diplomáticas
com a ilha. Foi em 1998, para irritação de Fidel. "Cuba não está
interessada em diálogo", disse
ele então ao "Jornal do Brasil".
Na avaliação do chanceler e
contrariando os chamados
"construtivos", não interessava
ao projeto de poder de Fidel tirar o bode das sanções americanas da sala. Há quem acredite
que hoje tampouco interesse.
Mas se nos 90 a correspondência diplomática mostrava
extremo interesse pelo Brasil,
nos primeiros anos da revolução vigorava o "cubanocentrismo". Os diplomatas brasileiros
em Havana se ressentiam do
desdém e viam com espanto a
diplomacia revolucionária.
Um caso é relatado em telegrama de 1963, quando o encarregado de negócios José Maria
Diniz de Gamboa atribui a concessão de um salvo-conduto a
um oponente asilado na Embaixada do Brasil -foram centenas, segundo o historiador
Moniz Bandeira- à compra de
café brasileiro pela ilha.
A exceção era Ernesto "Che"
Guevara, na avaliação de Gamboa: "Como todo bom argentino, avaliava perfeitamente a
importância do Brasil".
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: A Revolução aos 50 / Uma voz à esquerda: "Regime tem hoje mais condição de resistir" Índice
|