São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2008

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A REVOLUÇÃO AOS 50 / BRASÍLIA E HAVANA

Cartas revelam relação com Brasil

Documentos do Itamaraty mostram diálogos em sintonia com momentos históricos das últimas décadas

Correspondência também serve de termômetro para a relação com EUA; em 1990, Fidel se disse aberto a rever dogmas por laços melhores


FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Enquanto os regimes comunistas do Leste Europeu derretiam e a maior parceira de Cuba, a União Soviética, também, Fidel Castro mandou dizer ao Brasil que estava "firmemente disposto a deixar para trás todos os dogmas", ansioso por parcerias econômicas e políticas com o governo Fernando Collor (1990-1992).
O emissário da mensagem foi o então embaixador do Brasil em Havana, Ítalo Zappa (1926-1997), que a remeteu em telegrama confidencial ao Itamaraty em fevereiro de 1990, um mês antes da posse de Collor.
"Mais de uma vez, o próprio presidente Fidel Castro, na expectativa e na ansiedade de iniciar o diálogo no mais alto nível com o Brasil, antecipou-nos sua firme disposição de deixar para trás todos os dogmas", diz o texto inédito "Cuba. Evolução da Situação Interna. A difícil estratégia de Fidel Castro e o Brasil", consultado pela Folha nos arquivos do Itamaraty.
Era um momento de inflexão. As correspondências diplomáticas mencionam as previsões que circulavam: o regime comunista na ilha acabaria em meses. Faltava de trigo a rolos de telex, num clima de pré-guerra. Foi o mais próximo da debacle a que chegou o regime castrista que completará 50 anos na virada deste Ano Novo.
Neste meio século, as correspondências diplomáticas brasileiras são instantâneos da relação bilateral. Mostram gestões do Brasil para salvar oponentes do fuzilamento nos primeiros anos da revolução, detalham o temor da ameaça cubana pela ditadura militar brasileira e são termômetro da relação Brasília-Washington, marcando menor ou maior alinhamento.
Na série de telegramas de análise entre 1989 e 1990, Zappa, amigo de Fidel e um dos pais da diplomacia Sul-Sul, queixava-se da ofensiva pela capitulação iniciada pela Casa Branca de George Bush (1989-1993). Ele culpava Bush por impelir Cuba à tática "do ardor revolucionário" da fidelidade ao socialismo "como sinônimo de independência nacional" para permanecer "em guarda".
Zappa prevê a resistência de Fidel, mesmo advertido de que poderia levar a ilha ao holocausto. "Talvez ele tenha em mente que, na obra e na biografia, o risco do holocausto pode ser inevitável no caminho da história." Foi o diplomata que reabriu a embaixada em Havana e, em 1986, no governo Sarney, foi responsável por reatar as relações entre Brasil e Cuba, após 24 anos de rompimento.
Bush pai anunciava que lançaria à ilha, por balões aeroestáticos, o sinal da TV Martí, de propaganda anticastrista, e fazia exercícios navais no Caribe meses após invadir o Panamá.
A ofensiva foi também diplomática. Em novembro de 1989, o Departamento de Estado enviou carta ao Itamaraty dizendo que o apoio de Brasília ao debate sobre a volta de Cuba à OEA (Organização dos Estados Americanos) "levantaria uma questão inoportuna nas excelentes relações bilaterais".

1990, 2008
Zappa queixa-se também da crise econômica aguda dos países da América Latina, que os impediam de fazer frente às pressões americanas. "A esperança remanescente de Cuba é a força instintiva que levará a América Latina, mais cedo ou mais tarde, à formação de um bloco próprio", escreveu, no embrião de um processo que culminou há duas semanas, com a entrada de Cuba no Grupo do Rio, em meio às mesmas esperanças da ilha de que as cobranças latino-americanas por mudanças na política de Washington surtam algum efeito.
No começo dos anos 90, como agora, o Brasil pregava o "engajamento construtivo", sem críticas públicas à repressão política na ilha, na crença oficial de que o acolhimento na América Latina e um movimento de "fim da política, psicológica ou não, de cerco" pelos EUA poderiam levar a melhorias em direitos humanos.
Mas a abordagem não foi consenso nesses 22 anos, embora a condenação do embargo econômico a Cuba o tenha sido. O então chanceler de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), Luis Felipe Lampreia, foi o único de seu escalão a encontrar dissidentes cubanos depois que foram restabelecidas as relações diplomáticas com a ilha. Foi em 1998, para irritação de Fidel. "Cuba não está interessada em diálogo", disse ele então ao "Jornal do Brasil".
Na avaliação do chanceler e contrariando os chamados "construtivos", não interessava ao projeto de poder de Fidel tirar o bode das sanções americanas da sala. Há quem acredite que hoje tampouco interesse.
Mas se nos 90 a correspondência diplomática mostrava extremo interesse pelo Brasil, nos primeiros anos da revolução vigorava o "cubanocentrismo". Os diplomatas brasileiros em Havana se ressentiam do desdém e viam com espanto a diplomacia revolucionária.
Um caso é relatado em telegrama de 1963, quando o encarregado de negócios José Maria Diniz de Gamboa atribui a concessão de um salvo-conduto a um oponente asilado na Embaixada do Brasil -foram centenas, segundo o historiador Moniz Bandeira- à compra de café brasileiro pela ilha.
A exceção era Ernesto "Che" Guevara, na avaliação de Gamboa: "Como todo bom argentino, avaliava perfeitamente a importância do Brasil".


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