São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006

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ARTIGO

Ocidente não entende a vitória do Hamas

RAMI G. KHOURI

Tem sido extremamente fascinante estar nos EUA nesta semana e observar as reações à dramática vitória do movimento islâmico palestino Hamas nas eleições parlamentares da quarta-feira.
Os comentários tanto oficiais quanto da mídia indicam que a natureza histórica do que acaba de acontecer na Palestina dificilmente será compreendida nos EUA e em muitas outras partes do mundo ocidental, porque o Hamas e o resto do Oriente Médio continuam a ser julgados segundo o critério último de sua anuência às exigências da segurança israelense.
Isso é uma lástima trágica, porque a vitória do Hamas -que se deu após vitórias islâmicas semelhantes no Egito, no Líbano e no Iraque- também oferece uma potencial oportunidade política, se se mantiver a cabeça fria, de todos os lados.
Digo uma oportunidade potencial porque a ascensão do Hamas ao poder permanece cercada de muitas incógnitas e provoca temores profundos entre muitas pessoas no Oriente Médio e em outras partes do mundo. Não é certo que o Hamas tenha sucesso como partido no poder.
Com relação à vitória do Hamas, três pontos parecem ser cruciais. O primeiro é que a campanha eleitoral não foi um referendo sobre guerra ou paz com Israel. O Hamas não venceu porque prometeu varrer Israel do mapa. Venceu porque prometeu resolver alguns dos terríveis desequilíbrios e as caóticas distorções que vêm definindo a sociedade interna palestina nos últimos anos.
Esses problemas incluem a corrupção e incompetência no sistema de governança da Autoridade Nacional Palestina, a anarquia em nível local e a humilhante incapacidade de proteger o funcionamento cotidiano das comunidades palestinas contra a contínua e violenta investida das políticas de ocupação israelenses.
O Hamas venceu porque os palestinos acham que a organização pode fazer um trabalho melhor do que o Fatah ao garantir ordem e respeito próprios no dia-a-dia dos palestinos.

No governo é outra coisa
O segundo aspecto importante do resultado eleitoral é que a partir de agora o Hamas vai sentir a responsabilidade que acompanha a situação de ser governista. Na condição de autoridade governante democraticamente eleita, quer governe sozinho ou em coalizão com o Fatah ou outros grupos palestinos, o Hamas terá de agir de maneira que reflita amplamente a visão da maioria dos cidadãos palestinos. Essa maioria vem manifestando claramente e de maneira consistente o desejo de negociar com Israel uma paz justa e permanente e de conviver em paz com o Estado judaico, em lugar de varrê-lo da face da terra.
O terceiro ponto importante relativo à vitória do Hamas é que, para uma liderança política, ela representa uma espécie de legitimidade que tem sido rara no mundo árabe moderno. A vitória maciça do Hamas é significativa em si mesma, mas também por representar uma histórica e pacífica transferência do poder de algo que, na prática, vem sendo um Estado unipartidário governado pelo Fatah para uma oposição que chegou ao poder por meio de eleições democráticas.
Existem diferenças importantes entre as causas da vitória do Hamas e suas possíveis conseqüências. Essas diferenças precisam ser compreendidas se quisermos que essa notável vitória democrática tenha resultados positivos para palestinos, israelenses e o resto da região e do mundo.

"Brigadas da Histeria"
O que está claro nos EUA é que as "Brigadas da Histeria" já se puseram em marcha, aqui e, em especial, em Israel.
O Hamas é avaliado quase exclusivamente com base nas chances de a organização depor suas armas e reconhecer o direito de Israel à existência -ignorando, de maneira espantosa, o fato de que o Hamas só se armou em primeiro lugar para resistir à ocupação israelense.
Seria uma tragédia lamentável e uma enorme oportunidade perdida se Israel, os EUA e o resto do mundo civilizado simplesmente agravassem os erros que cometeram e que foram os responsáveis iniciais pelo surgimento do Hamas. Sobretudo o nascimento, a ascensão e o triunfo político do Hamas refletem a reação palestina sustentada à política governamental israelense, apoiada pelos EUA, de desprezo colonial pelos direitos nacionais palestinos.
Israel e os EUA há décadas vêm se recusando a reconhecer que o Hamas (como o Hizbollah) nasceu como reação contra a ocupação israelense e o abuso dos direitos e da integridade nacional árabes. As políticas do Hamas precisam ser vistas no contexto da luta entre israelenses e palestinos.
Exigir que o Hamas desarme unilateralmente sua ala de resistência ou que reconheça unilateralmente a existência de Israel não dará em nada, se tal reivindicação não for acompanhada de medidas israelenses paralelas para deixar de assassinar palestinos e colonizar suas terras.
A prioridade urgente agora seria que mediadores terceiros, com calma, formulassem um processo que identificasse simultaneamente os direitos e aspirações legítimos de israelenses e palestinos e que tomassem medidas diplomáticas para assegurar esses direitos.


Rami G. Khouri é editor-chefe do jornal "Daily Star", de Beirute, publicado em todo o Oriente Médio em conjunto com o "International Herald Tribune". Copyright Agence Global.

Tradução de Clara Allain


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