São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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Brancos protestam por menino negro pobre

Às vésperas da cúpula do G20 em Londres, milhares de manifestantes pedem ações pelo ambiente e contra pobreza

Marcha pacífica contra a crise culpa bancos e reúne 35 mil; grupo heterogêneo condena desde guerras até a repressão chinesa no Tibete

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

O menino negro de olhos negros veste andrajos, segura a pasta executiva símbolo do Tesouro britânico e reclama: "Eles ajudaram a salvar os bancos e o "big business". Agora é hora de que ajudem a salvar a vida de crianças".
O menino negro de olhos negros, sua pasta e sua queixa são de papelão, nos cartazes que a ONG "Save The Children" espalhou pela Piccadilly. Por ele passa rumo ao Hyde Park, o grande parque central de Londres, uma massa de ao menos 12 mil pessoas, a esmagadora maioria branca e de diferentes cores de olhos, que pretende falar em nome do menino negro e de incontáveis outros meninos e adultos do mundo todo.
É a marcha de protesto contra a crise e que pede que a cúpula do G20 da próxima quinta-feira "put people first", coloque as pessoas em primeiro lugar, como diz o slogan principal da manifestação.
Os organizadores, durante a manhã, falaram em 40 mil pessoas, a polícia calculou no fim do dia cerca de 35 mil. Mas o palpite mais responsável foi dado pelo policial da "Unidade de Resposta de Bicicleta" tipicamente britânica que abria caminho para os manifestantes, quando a Folha quis saber quantos eram. "A lot" (um montão, em tradução livre), respondeu o policial.
Não havia raiva na manifestação, até porque, como indica o seu slogan principal, se tratava de um ato propositivo. Para esta semana, fica o destrutivo, o "G20 Meltdown", o derretimento do G20, que pretende soltar na City londrina, seu centro financeiro, os quatro cavaleiros do apocalipse.

Parada
Ontem, desfilaram causas mil, com predomínio das ambientalistas, cujas principais grifes ("Greenpeace", "Amigos da Terra" e "Fundo Mundial pela Natureza") abriam o desfile, silencioso a maior parte do tempo, sem carro de som, sem alto-falantes, sem discursos -reservados todos para o encerramento, no palco armado em um Hyde Park açoitado por um vento gelado que desmentia a primavera do calendário.
Em todo o caso, uma bandinha animava a turma do Sindicato Geral Britânico, velho de exatos 110 anos, tocando "charleston", a música dos loucos anos 20 do século passado, como se quisesse insinuar que os anos 10 do século 21 são também loucos, embora a loucura seja de outra natureza.
Natureza financeira como reclamava um dos cartazes mais repetidos que dizia "0% de interesse pela pobreza".
Gritos, havia, vindos de um minigrupo de caras pintadas de origem tibetana, que cantavam "China lie/ people die" (A China mente/pessoas morrem).
Pedia-se o fim do bloqueio de Gaza, a liberdade da Palestina, solidariedade com a Nicarágua, o fim da ocupação do Iraque e do Afeganistão, a troca do primeiro-ministro Gordon Brown pelo "poder verde", e até se reciclava a frase-símbolo da campanha presidencial de Barack Obama: "Yes, you can put people first" ("Sim, você pode pôr as pessoas em primeiro lugar").
Passava de repente um estranho chapéu de bico colorido com a palavra "Curdistão" e nada mais, passavam os anarquistas atrás de suas bandeiras vermelho-e-negras, o único grupo ladeado por policiais, porque é deles que se temem incidentes, sempre que há manifestações.
Passavam também as velhas bandeiras dos velhos sindicatos de toda a Europa, da CGT francesa aos metalúrgicos preocupados com os novos tempos, que perguntavam em seu cartaz: "E o nosso futuro, Mr. Mittal?", em alusão ao indiano Lakshmi Mittal, que se tornou o rei do aço nesses tempos de globalização.
Em alguns momentos, a marcha se parecia com o convescote da geração de 1968, que incendiou o mundo há 40 anos, mas, agora, volta às ruas com os ralos cabelos brancos e a dificuldade para caminhar típica dos sexagenários.
Em outros momentos, era um desfile de individualidades com suas próprias bandeiras, como: "Give up greed; there is people to feed" (abandone a cobiça, há pessoas para alimentar"), um apelo de fé, natural em uma manifestação que começou com um ato ecumênico.
Um segundo grupo anarquista, a Federação Anarquista, gritava atrás de sua bandeira toda negra: "O capitalismo é a crise. Não vamos pagar por sua crise".
Ninguém explicou como conseguirão não pagar pela primeira crise que é sincronizadamente global. Talvez a resposta estivesse pintada em uma solitária bandeira da Venezuela que sugeria: "Revolução: por que não agora?".


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