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Brancos protestam por menino negro pobre
Às vésperas da cúpula do G20 em Londres, milhares de manifestantes pedem ações pelo ambiente e contra pobreza
Marcha pacífica contra a crise culpa bancos e reúne 35 mil; grupo heterogêneo condena desde guerras até a repressão chinesa no Tibete
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES
O menino negro de olhos negros veste andrajos, segura a
pasta executiva símbolo do Tesouro britânico e reclama:
"Eles ajudaram a salvar os bancos e o "big business". Agora é
hora de que ajudem a salvar a
vida de crianças".
O menino negro de olhos negros, sua pasta e sua queixa são
de papelão, nos cartazes que a
ONG "Save The Children" espalhou pela Piccadilly. Por ele
passa rumo ao Hyde Park, o
grande parque central de Londres, uma massa de ao menos
12 mil pessoas, a esmagadora
maioria branca e de diferentes
cores de olhos, que pretende falar em nome do menino negro e
de incontáveis outros meninos
e adultos do mundo todo.
É a marcha de protesto contra a crise e que pede que a cúpula do G20 da próxima quinta-feira "put people first", coloque as pessoas em primeiro lugar, como diz o slogan principal
da manifestação.
Os organizadores, durante a
manhã, falaram em 40 mil pessoas, a polícia calculou no fim
do dia cerca de 35 mil. Mas o
palpite mais responsável foi dado pelo policial da "Unidade de
Resposta de Bicicleta" tipicamente britânica que abria caminho para os manifestantes,
quando a Folha quis saber
quantos eram. "A lot" (um
montão, em tradução livre),
respondeu o policial.
Não havia raiva na manifestação, até porque, como indica
o seu slogan principal, se tratava de um ato propositivo. Para
esta semana, fica o destrutivo,
o "G20 Meltdown", o derretimento do G20, que pretende
soltar na City londrina, seu
centro financeiro, os quatro cavaleiros do apocalipse.
Parada
Ontem, desfilaram causas
mil, com predomínio das ambientalistas, cujas principais
grifes ("Greenpeace", "Amigos
da Terra" e "Fundo Mundial
pela Natureza") abriam o desfile, silencioso a maior parte do
tempo, sem carro de som, sem
alto-falantes, sem discursos
-reservados todos para o encerramento, no palco armado
em um Hyde Park açoitado por
um vento gelado que desmentia a primavera do calendário.
Em todo o caso, uma bandinha animava a turma do Sindicato Geral Britânico, velho de
exatos 110 anos, tocando "charleston", a música dos loucos
anos 20 do século passado, como se quisesse insinuar que os
anos 10 do século 21 são também loucos, embora a loucura
seja de outra natureza.
Natureza financeira como
reclamava um dos cartazes
mais repetidos que dizia "0%
de interesse pela pobreza".
Gritos, havia, vindos de um
minigrupo de caras pintadas de
origem tibetana, que cantavam
"China lie/ people die" (A China mente/pessoas morrem).
Pedia-se o fim do bloqueio de
Gaza, a liberdade da Palestina,
solidariedade com a Nicarágua,
o fim da ocupação do Iraque e
do Afeganistão, a troca do primeiro-ministro Gordon Brown
pelo "poder verde", e até se reciclava a frase-símbolo da campanha presidencial de Barack
Obama: "Yes, you can put people first" ("Sim, você pode pôr
as pessoas em primeiro lugar").
Passava de repente um estranho chapéu de bico colorido
com a palavra "Curdistão" e nada mais, passavam os anarquistas atrás de suas bandeiras vermelho-e-negras, o único grupo
ladeado por policiais, porque é
deles que se temem incidentes,
sempre que há manifestações.
Passavam também as velhas
bandeiras dos velhos sindicatos
de toda a Europa, da CGT francesa aos metalúrgicos preocupados com os novos tempos,
que perguntavam em seu cartaz: "E o nosso futuro, Mr. Mittal?", em alusão ao indiano
Lakshmi Mittal, que se tornou
o rei do aço nesses tempos de
globalização.
Em alguns momentos, a marcha se parecia com o convescote da geração de 1968, que incendiou o mundo há 40 anos,
mas, agora, volta às ruas com os
ralos cabelos brancos e a dificuldade para caminhar típica
dos sexagenários.
Em outros momentos, era
um desfile de individualidades
com suas próprias bandeiras,
como: "Give up greed; there is
people to feed" (abandone a cobiça, há pessoas para alimentar"), um apelo de fé, natural
em uma manifestação que começou com um ato ecumênico.
Um segundo grupo anarquista, a Federação Anarquista, gritava atrás de sua bandeira toda
negra: "O capitalismo é a crise.
Não vamos pagar por sua crise".
Ninguém explicou como
conseguirão não pagar pela primeira crise que é sincronizadamente global. Talvez a resposta
estivesse pintada em uma solitária bandeira da Venezuela
que sugeria: "Revolução: por
que não agora?".
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