São Paulo, sábado, 29 de abril de 2006

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"EIXO DO MAL"

Caminhada rumo à energia nuclear teve início em 1974, quando o xá decidiu buscar fontes alternativas ao petróleo

Ocidente ajudou o programa nuclear do Irã a ser o que é

NATALIE NOUGAYREDE
DO "LE MONDE"

Em outubro de 1974 o xá do Irã, Mohamad Reza Pahlevi assinou o seguinte decreto imperial: "Um dia o petróleo se esgotará. Usar esse produto nobre para operar fábricas e iluminar residências é uma perda. (...) Prevemos produzir, no menor prazo possível, 23 mil megawatts de eletricidade utilizando centrais nucleares."
A aventura nuclear iraniana começou: longa, difícil, semeada de hesitações, de interrupções, segredos e tensões e conduzindo a uma crise diplomática cujo desenlace ninguém é capaz de prever. Hoje o Irã se encontra no banco dos réus, ameaçado de isolamento, acusado pela comunidade internacional de ter procurado dotar-se de arma atômica de maneira clandestina entre 1985 e 2003 -o ano no qual suas ações foram expostas pelos inspetores da ONU -, desprezando os compromissos assumidos em 1970 como participante do Tratado de Não-Proliferação. Alguns setores em Washington e Israel cogitam resolver o problema por meios militares, como em 1981, com o ataque israelense à central nuclear de Osirak, no Iraque, vendida a Saddam Hussein pela França.
Como se chegou a isso? Como o Irã, depois do Paquistão -que, em 1998, demonstrou o fato de ter se dotado da bomba atômica, a primeira "bomba muçulmana" - conseguiu escapar da vigilância internacional durante tantos anos? Quem forneceu equipamentos nucleares ao Irã? Quem permitiu que o Irã de hoje, o Irã dos mulás e de seu novo presidente, Mahmoud Ahmadinejad, que manifesta um nacionalismo exaltado e rancoroso, pudesse agitar diante do mundo o espectro da arma suprema, com a possibilidade de que ela caia nas mãos de islâmicos fanatizados?

Usina francesa
Essas perguntas foram respondidas com tranqüilidade por um diplomata francês em janeiro de 2006, durante uma viagem de avião a Moscou para discutir com representantes do Kremlin possíveis saídas para o imbróglio nuclear: "No caso da capacidade nuclear civil, é simples. Todo o mundo ajudou o Irã". É verdade. A França ajudou o Irã a partir de 1974, criando o programa Eurodif, que visava criar uma presença no mercado de enriquecimento de urânio, concorrendo com os EUA. O xá, que começava a acumular grande reserva de petrodólares, contribuiu com US$1 bilhão para a construção dessa usina na região francesa de Drome. Os EUA não ficaram de fora. Em 1957, Washington já assinara com o Irã um acordo de cooperação nuclear civil dentro do programa "Átomos pela Paz".


Quem permitiu que o Irã de hoje, dos mulás e de Ahmadinejad, pudesse agitar diante do mundo o espectro da arma suprema? É simples, diz um diplomata francês: todo o mundo ajudou o Irã

O xá Reza Pahlevi, aliado de Washington, não excluía a possibilidade de dotar-se da bomba nuclear, vista como algo que consagraria o poder do Irã na região. Ele olhava à sua volta: Israel havia montado 13 ogivas nucleares durante a guerra do Yom Kipur, em 1973, e a Índia realizara sua primeira explosão atômica em 1974. Mas, como escreveu em 2003 Kenneth Pollack, ex-diretor do Conselho Nacional de Segurança dos EUA no governo Bill Clinton, o interesse do xá pela bomba era moderado. Ele de fato mantinha um programa militar nuclear, mas não avançou além das pesquisas de base.
Esses projetos foram suspensos com a Revolução Islâmica, em 1979. A chegada ao poder do aiatolá Khomeini provocou a saída do país da empresa alemã Kraftwerk Union, filial da Siemens, que desde 1976 estivera engajada na construção de uma central nuclear em Bouchehr, às margens do golfo Pérsico. A firma francesa Framatome também deixou o país. Foi preciso esperar até 1995, com a conclusão de um contrato com a Rússia de Boris Ieltsin, interessada em garantir receita farta a um lobby atômico desorientado pelo fim da URSS, para que a atividade nuclear civil iraniana encontrasse um apoio de grande porte. Apoio, ou fachada cômoda para mascarar objetivos militares inconfessáveis? A pergunta continua em aberto até hoje.

Pai da bomba
Em meados dos anos 1980, em plena guerra com o Iraque, a saga nuclear iraniana enveredou por um rumo inquietante: o do filão clandestino do "pai" da bomba paquistanesa, Abdul Qadeer Khan, homem do qual se tinha conhecimento há anos, mas ao qual os serviços de informações ocidentais não têm acesso desde que, em fevereiro de 2004, foi colocado em prisão domiciliar em Islamabad por ordem do presidente Pervez Musharraf. A marca da "rede Khan" se manifesta em todas as revelações sobre a amplitude das atividades clandestinas do Irã. É em Viena, dentro do prédio austero da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), às margens do Danúbio, que equipes de especialistas há três anos vêm se debruçando sobre esse grande mistério.
Nesse lugar onde trabalha Mohamed El Baradei, Nobel da Paz em 2005, são reunidos os documentos divulgados a conta-gotas pelo Irã, são examinadas as imagens de satélite, estudadas as análises químicas, as amostras de solo e os equipamentos científicos e vasculhados os planos das usinas que ficaram secretas até 2003: o complexo de enriquecimento de urânio de Natanz, o de Arak, onde está sendo construído um reator de água pesada, e o sítio militar de Lavizan-Shian, repentinamente demolido e transformado pelas autoridades iranianas encurraladas em parque municipal.
A conclusão dos especialistas da ONU, de relatório em relatório, desde 2003, é praticamente sempre a mesma: o Irã mentiu, se omitiu, negou-se a explicar claramente. Se o Conselho de Segurança da ONU optar pelo mecanismo das sanções, ele fundamentará seus argumentos nesses "buracos" presentes nas explicações do Irã. Ao contrário do caso das supostas armas de destruição em massa do Iraque em 2003, não se trata de uma distorção de dados da CIA, mas de uma análise imparcial conduzida por especialistas internacionais cuja autoridade e competência ninguém contesta.
"Os iranianos admitiram à AIEA que foram equipados pela rede Khan ", explica o especialista David Albright, do Instituto de Ciências e Segurança Internacional. Abdul Qadeer Khan exerceu papel central ao fornecer os planos de centrífugas ao Irã. Mas há indicações de participação também da China e da Rússia.

Lista confidencial
Além disso, os serviços de informação americanos e a AIEA dispõem de uma lista confidencial de empresas européias que, aproximadamente entre 1985 e 1993, venderam ao Irã equipamentos necessários para a construção de centrífugas. Essas empresas, especialmente alemãs e suíças, teriam agido em violação dos acordos de garantias da AIEA, na medida em que esses fornecimentos não foram declarados à Agência. A fronteira entre a capacidade nuclear civil e a militar reside essencialmente no grau de enriquecimento do urânio que um país tem capacidade de realizar, graças à instalação de dezenas de milhares de centrífugas interligadas num sistema dito "de cascata".
De acordo com um especialista francês, não resta dúvida alguma de que o Irã tomou esse caminho: "Eles afirmam que seus equipamentos têm finalidade apenas civil, mas isso equivale a querer montar uma cadeia de produção industrial de munições e fuzis automáticos e afirmar que o objetivo é apenas atirar em pombas com uma carabina".
O Irã bateu em todas as portas para suprir seu programa nuclear, não sem sucesso, apesar da desconfiança ocidental redobrada a partir dos anos 1990. Foram feitos contatos clandestinos na Europa, em Pequim, Moscou e Dubai. Nos últimos 20 anos o Irã aproveitou plenamente as muitas falhas existentes no sistema internacional de não proliferação. Os EUA eram o país que manifestava mais preocupação diante disso. Em 1996, Washington interveio para impedir a China de vender uma central de conversão de urânio a Teerã. Mas era tarde demais: os planos já estavam nas mãos dos iranianos.
Então a quem cabe a responsabilidade maior? Depois de três anos de trabalho, a AIEA ainda não conseguiu definir com certeza se o Irã já conseguiu obter planos de arma nuclear adaptável, por exemplo, a seus mísseis Shahhab-3, obtidos da Coréia do Norte. O grande depositário desse segredo é sem dúvida o professor Abdul Qadeer Khan, o homem que durante dez anos se especializou em "proliferar" em direção ao Irã, Líbia e Coréia do Norte e que hoje vive recluso no Paquistão, longe dos ouvidos indiscretos.

Tradução de Clara Allain

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