São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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ARTIGO

Um outro lado de Ieltsin

Num país onde relações pessoais resvalam para a esfera pública, aspectos da personalidade do presidente explicam desenlaces políticos do pós-comunismo

ANGELO SEGRILLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A cobertura jornalística do dia seguinte à morte do presidente russo Boris Ieltsin, na última segunda, tocou nos principais pontos de sua carreira política. Entretanto, para os interessados, é possível ir além, a um nível mais pessoal e íntimo, simplesmente lendo as autobiografias que ele escreveu: "Diários da Meia-Noite", "Contra a Corrente" e "Minha Luta pela Rússia".
Por exemplo, pouca gente sabe que Boris, como Lula, não apenas compartilha os boatos de bebida excessiva mas também perdeu dois dedos da mão esquerda em uma travessura infantil com uma granada durante a guerra.
Esse não é um mero detalhe pitoresco. Como o próprio relata, sempre foi emblematicamente "levado da breca". Isso lhe valeria uma expulsão da escola e vários choques em sua carreira inicial no partido. O rebelde sem causa se transformaria em rebelde com causa na perestroika.
Em 1985, Mikhail Gorbatchov traria Ieltsin e outros líderes "jovens" reconhecidamente dinâmicos a Moscou para ajudá-lo a vencer as resistências no deslanchamento daquele processo. Entretanto, Ieltsin era mais radical que o próprio Gorby, e dois anos depois entrariam em choque a respeito da velocidade das mudanças.
Na Rússia, como no Brasil, as relações pessoais amiúde interferem na coisa pública. Assim, os diários de Ieltsin são importantes por narrar os detalhes internos de como aconteceu a aproximação e o distanciamento com Gorbatchov.
Ajudam também a entender o complicado momento posterior nas primeiras eleições parlamentares "livres" da União Soviética, em março de 1989, quando Ieltsin ainda formalmente no Partido Comunista se alia aos democratas (opositores liberais de fora do PC), formando o primeiro bloco de oposição parlamentar em 70 anos (o Grupo Inter-regional).
O fato de Ieltsin não ser totalmente democrata nem comunista ajuda a explicar muito de seu comportamento ambíguo posterior. Como presidente, ele levaria a Rússia pós-soviética na direção geral da democracia política, mas ocasionalmente utilizando métodos autoritários (como quando mandou canhonear o Parlamento para resolver o impasse entre presidente e deputados em outubro de 1993).
(Defesa da) Democracia à força ou à bala geralmente se revela problemática, como demonstram os exemplos do Iraque, do Brasil de 1964 ou da Rússia atual de Vladimir Putin.

"Terapia de choque"
As entrelinhas da biografia de Ieltsin também deixam claro que a opção da Rússia por uma "terapia de choque" para a passagem do socialismo ao capitalismo foi uma opção consciente e pensada. Não foi, como dizem alguns, um erro de cálculo. Os críticos argumentam que uma transformação mais gradual evitaria muitos dos traumas, distorções e injustiças ocorridos durante a gigantesca privatização feita às pressas.
Mas o gradualismo não era opção para a equipe econômica do ex-presidente. Segundo sua lógica, já que a transformação seria dolorosa, que ela fosse feita de maneira rápida para que a dor não se prolongasse. E, sobretudo, era uma visão de que a economia não podia ser separada da política: uma transição prolongada demais poderia dar espaço para que a forças de resistência se fortalecessem e talvez até impedissem a finalização da passagem ao novo sistema. Assim, o mito do "erro de cálculo" é desfeito: a terapia de choque foi uma opção política.
Por último, a fama da saúde fraca de Ieltsin necessita de qualificações. Ele foi bastante robusto, saudável (para alguém que bebe) e esportivo na maior parte da sua vida. O problema foi que, em 1996, quando teve problemas cardíacos, em vez de interromper a duríssima corrida à reeleição decidiu prosseguir à revelia. Resultado: quatro pontes de safena que o afetariam de maneira indelével posteriormente.
A Rússia também ficou indelevelmente marcada quando ele saiu do cargo.


ANGELO SEGRILLO é professor de história na USP e autor de "Rússia e Brasil em Transformação" (7Letras) e "O Declínio da URSS: Um Estudo das Causas" (Record)


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