São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 2005

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AMÉRICA LATINA

Washington "terceiriza" sua ação na transição política boliviana; missão pode constranger governo brasileiro

EUA delegam Bolívia a Brasil e Argentina

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM CARACAS

Condoleezza Rice, a secretária norte-americana de Estado, telefonou para o novo presidente boliviano, Eduardo Rodríguez, para avisá-lo de que já havia sugerido aos governos de Brasil e Argentina que ajudassem a Bolívia na transição até as eleições gerais que devem se realizar ainda neste ano ou no início do próximo.
É uma espécie de terceirização da ação norte-americana, sempre muito presente em momentos de crise na América Latina.
A missão de ajudar na transição boliviana pode ser uma complicação terrível para o governo brasileiro, na medida em que o PT tem ligações históricas com o líder cocaleiro Evo Morales, presumível candidato presidencial do MAS (Movimento ao Socialismo), a agrupação mais à esquerda no quadro boliviano e que defende a nacionalização do gás.
Nacionalizar o gás significa expulsar a Petrobras, que explora campos petrolíferos no sul do país e o gasoduto que leva o produto para o Brasil. E, de quebra, significaria também dinamitar parte importante do projeto de integração sul-americana, menina dos olhos da diplomacia brasileira, lançado no governo Fernando Henrique Cardoso e intensificado com Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência.

Apoio brasileiro
Evo Morales é o único candidato, entre os principais, a defender a nacionalização do gás.
Os dois outros favoritos teóricos são contra: o ex-presidente Jorge Quiroga, o mais à direita, e o empresário Samuel Dória Medina, que seria o equivalente à social-democracia no espectro político boliviano.
Por isso mesmo, já há discretos sinais de apoio do Brasil aos dois candidatos contrários à nacionalização.
A eleição é decorrência da crise que afastou, em pouco tempo, dois presidentes (primeiro, Gonzalo Sánchez de Lozada, e em seguida seu vice, Carlos Mesa, que caiu no mês passado).
No bojo de um acordo com a oposição, acabou assumindo Rodríguez, presidente da Corte Suprema, que seria apenas o terceiro na linha sucessória.
A crise já provocou um abalo forte no projeto de integração pelo qual Lula demonstrou particular interesse.
A presença da Petrobras na exploração e na comercialização do gás boliviano não era apenas uma transação comercial. Previa que, na zona de fronteira, seriam construídas estradas e criado um pólo petroquímico. A instabilidade fez com que a estatal brasileira já anunciasse que tais planos estavam cancelados.
A ministra Dilma Rousseff, hoje na Casa Civil, emitiu, em seu período como ministra de Minas e Energia, mais de um sinal de que a Bolívia precisava de estabilidade para que os negócios com o gás e o projeto de integração mais amplo pudessem evoluir.
É razoável supor, portanto, que, uma vez na Casa Civil, a ministra receba com carinho a sugestão da secretária de Estado norte-americana para que o Brasil ajude na transição.

Prejuízos
É do interesse do Brasil, até porque a Petrobras já está tendo prejuízos com a elevação do imposto sobre a exploração dos poços petrolíferos de 18% para 32%, aprovada pelo Congresso, sempre sob pressão da rua.
Um estudo do J.P. Morgan, instituição financeira norte-americana, mostra que a nova alíquota tributária causa à Petrobras prejuízo equivalente a 1% de seus negócios totais.
Parece pouco, mas não há empresa, no mundo, que suporte tranqüilamente um corte abrupto em seus lucros com rompimento de contrato (o contrato previa 18% de impostos, mas previa também que a Petrobras não poderia reclamar de alterações nos tributos bolivianos).
É óbvio que a nacionalização criaria um problema ainda maior, por mais que Oscar Serrate, que foi um dos principais negociadores do acordo Brasil/Bolívia sobre o gás, diga que se tratou de "um dos melhores negócios da história da Bolívia".

Votos
Serrate, hoje no setor privado, admite, no entanto, que a sensação do público boliviano é diferente, por um só motivo: a legislação boliviana previa que o imposto seria de 18% para poços novos (e que, por isso, exigiriam investimentos para mapear o potencial e, depois, colocá-los em operação). Para poços conhecidos, a taxação pulava para 50%.
Acontece que os poços dados à Petrobras, embora novos, já tinham grande potencial conhecido havia pelo menos meio século.
É fácil, portanto, ganhar votos pregando a renacionalização do gás. Mas é também um tiro no pé, conforme conselhos que a CAF (Corporação Andina de Fomento) já fez chegar a Evo Morales.
Tiro no pé porque ter a posse do subsolo onde está o gás só é relevante se houver também meios para desenvolver a produção (tecnologia, financiamento e mercados).
É esse o nó que os Estados Unidos "terceirizaram" para Brasil e Argentina, que, de resto, já têm divergências entre si suficientes para dispensar o imbróglio.


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