São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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O IMPÉRIO VOTA - RETA FINAL

Grau de polarização é muito alto e surpreende em país em que candidatos trafegam normalmente pelo centro da cena política

País dividido faz eleição que é "guerra incivil"

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL À FILADÉLFIA

O direito à liberdade de expressão é característica fundamental, fundacional mesmo, dos Estados Unidos, mas, nesta eleição, tomou a forma perigosa e emblemática de um Cadillac prata.
Barry Seltzer, 46, democrata de carteirinha, usou seu carro para ameaçar atropelar a deputada (republicana) Katherine Harris, candidata à reeleição pelo Estado da Flórida, na terça-feira.
Preso, justificou: "Estava exercendo meu direito à expressão política".
Harris ficou famosa nas eleições de 2000, quando exercia o cargo de secretária de Estado na Flórida e tomou algumas decisões polêmicas no processo que culminou com a ainda mais polêmica vitória do atual presidente George Walker Bush sobre o democrata Al Gore.
Pelo ressentimento deixado por esse resultado ou, talvez, por motivos ainda não devidamente identificados pelos próprios especialistas norte-americanos, transformar um Cadillac em arma de "expressão política" mostra o quanto o país está dividido nesta eleição.
John Zogby, um dos mais famosos pesquisadores de opinião pública do país, diz que a campanha de 2004 é "mais amarga e mais raivosa" do que a de 2000, o que já dá uma idéia do grau de polarização.
Reforça Thomas Friedman, colunista itinerante do jornal "The New York Times", um dos mais badalados no mundo, em seu artigo de ontem: "A política americana está tão polarizada hoje que não há centro, só lados".
Tão polarizada que a revista "Time", no seu número desta semana, trata a eleição como uma "uncivil war", cuja tradução literal seria "guerra incivil", ou, mais adequadamente, beligerância pouco civilizada.
A incivilidade desce aos mínimos detalhes. Nos subúrbios da Filadélfia, os cartazes de propaganda de Bush fincados nos jardins amanhecem, não raro, com uma suástica pintada. Os de John Kerry, o candidato democrata, com balas (de revólver) pintadas na testa ou nos olhos.
O troco é igualmente "incivilizado": militantes democratas contam que, quando vão dormir, põem pó de mico nos cartazes, para evitar que sejam destruídos ou pichados.
Pó de mico não é nada diante do que aconteceu com Terry Anderson, candidato democrata à Assembléia estadual de Ohio. Fotos dele ao lado de um terrorista do grupo Hizbollah (Partido de Deus, com base no Líbano) foram distribuídas como contrapropaganda, para insinuar que Anderson é pró-terrorismo ou, no mínimo, brando em relação aos terroristas.
Na verdade, Terry Anderson está sendo duplamente vítima do terrorismo: ele passou sete anos seqüestrado no Líbano, precisamente pelo Hizbollah. Libertado, depois de algum tempo voltou ao país para conversar com um dos seqüestradores, ocasião em que foi feita a foto, agora usada na propaganda, em truque condenado no editorial de ontem do "New York Times".
Algumas das propagandas usadas neste ano transformam em brincadeira de jardim de infância as agressões mútuas entre tucanos e petistas na campanha municipal paulistana.
Exemplo: a revista "Time" relata que, em Arkansas e na Virgínia Ocidental, milhares de folhetos despachados como correspondência do Partido Republicano afirmam que, se Kerry for eleito, a Bíblia seria proibida.
"Acho que a presente eleição está jogando as pessoas umas contra as outras", queixa-se Harold Freeman, do alto de sua experiência de 86 anos, que o levou de office-boy à presidência da hoje extinta Phoenix Steel (Filadélfia).
O paradoxal é que a polarização ocorre no país que menos polarização teve historicamente entre seus dois grandes partidos, ambos trafegando pelo centro, com fatias mais à direita ou mais à esquerda. Mas nada que se comparasse, por exemplo, às grandes disputas eleitorais na Europa ocidental, durante a Guerra Fria.
Agora, no entanto, dos cantos mais inesperados vêm declarações que dão à eleição de terça-feira um caráter épico. Caso, por exemplo, de John Harris, herdeiro da petrolífera Standard Oil, um ramo que nunca foi propriamente amante do ambiente limpo. Harris doou imponente US$ 1,8 milhão à campanha de Kerry, alegando que a eleição é "uma batalha realmente importante por causa das muitas coisas terríveis que esta administração fez no campo ambiental".
Ambiente, aborto, pesquisa com células-tronco, casamento gay são os temas que dividem os norte-americanos, mas a questão realmente decisiva, a Guerra do Iraque, revela polarização, sim, mas, acima de tudo, perplexidade.
Uma pesquisa deste mês do respeitado Centro de Pesquisas Pew mostra que 46% dos consultados acham que usar força militar para derrubar Saddam Hussein foi uma decisão correta, mas 42% dizem o contrário. A maioria (60%), no entanto, continua acreditando que usar ação militar preventiva pode ser justificado.
Se a polarização se transformar, nas urnas, em um resultado apertado, como prevêem as pesquisas, cairá no que a mídia norte-americana vem chamando de "margem de litígio".
No país dos advogados, naturalmente haverá um formidável litígio judicial, capaz de transformar a confusa eleição de 2000 no mais puro e limpo dos pleitos da história planetária.
Já há 20 mil advogados de plantão, distribuídos pelos 11 ou 12 Estados nos quais se acredita que o resultado estará na "margem de litígio", prontos para acionar a Justiça -e, por extensão, aumentar a carga de azedume que o pesquisador Zogby já vê no pleito de 2004.


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