São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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OLHAR BRASILEIRO

Que saudade das manchas!

VIK MUNIZ

Quatro anos atrás, enquanto o país despertava de um estupor político cujas maiores preocupações eram manchas em vestidos ou o que fazer com um superávit fiscal trilionário, a nação parecia dividida entre os que votavam e os que não. Os que votaram evidenciaram frustrados o processo eleitoral falho e maleável que deu à uma suprema corte republicana o poder de decidir quem seria o novo presidente. Grande parte deste processo anti-democrático se deve ao estrategista republicano Karl Rove, o cérebro de Bush, Bush pai, Nixon e muitos outros republicanos carentes de um cérebro.. Rove seguindo a tradição de seu mentor, Donald Segretti (protagonista da campanha de "Truques Sujos" que se beneficiou do roubo de documentos em Watergate), desenhou uma campanha política baseada na inflexibilidade do caráter de Bush e como Segretti, se utilizou de todos os recursos possíveis para sujar e queimar a imagem de Kerry frente ao publico Americano.
Rove deu inicio à campanha de 2004 no mais puro estilo de Goebbels, logo depois do discurso presidencial no congresso de 20 de Setembro de 2001, quando o presidente anunciou a sua guerra "internacional" contra o terrorismo. A partir deste ponto, a constante necessidade de compensação estratégica pelas falhas de um governante fraco e ignorante transformaram o governo de Bush em uma contínua remodelação estética de seu caráter perante o eleitorado. Grande parte do contingente de manipuladores da campanha de Bush de 2000 passaram a exercer cargos no governo, controlando a paranóia popular através de um conveniente sistema de cores ou agendando alertas terroristas às vésperas de apelos de verba militar ao senado. O próprio Patriot Act de Ashcroft, o AI-5 Americano, passou a ser usado como um eficaz instrumento para a supressão de críticas e oposições ao governo. Os quatro anos do governo de George W. Bush tem constituído a mais longa campanha eleitoral da história dos Estados Unidos. O que os Republicanos decidiram chamar de campanha, é a simples colheita de resultados após um período de quatro anos de manipulação psicológica do eleitorado.
Kerry que de uma forma firme e convincente, debateu um George Bush gago, vacilante, repetitivo e monossilábico, não conseguiu sequer arranhar a o exoesqueleto desenhado por Rove para o invertebrado presidente. Kerry é simplesmente uma pessoa, com opiniões e atitudes, sujeita à complexidades e crises; Bush, com sua simplicidade vazia se deixou moldar perfeitamente à forma suma das ambições de seu partido. Kerry é um Homem; Bush é uma idéia,
uma idéia terrível.
Quatro anos atrás a estória era outra, que saudades de Clinton, das manchas, dos superávits e dos diletantes. O país hoje se encontra igualmente dividido, mas de uma maneira terrivelmente mais preocupante que em 2000; uma divisão legitimamente ideológica que marginaliza a própria figura do oponente, John Kerry. Bush se beneficia de um contexto eleitoral que, de uma forma ou de outra, circula em torno de si mesmo; o voto não será dividido entre Bush e Kerry e sim entre os sobreviventes e as vítimas de longa exposição à propaganda do maquiavélico ilusionista anti-democrata Karl Rove.
Quem ganhar esta eleição, se sentará em um trono de duas pernas, e reinará sobre súditos que perderam a capacidade de confiar em seus lideres, a capacidade de confiar em outros, que por medo, perderam a capacidade de confiar em si mesmos. Foi através de um eleitorado semelhantemente desesperançoso e covarde, através de semelhantes mentiras e manipulações que a direita Alemã consolidou seu poder nos meados dos anos trinta. Aristófanes disse uma vez que os sábios aprendem muito com inimigos. Me parece que os ignorantes, egoístas e insensíveis o fazem com muito mais eficiência.


Vik Muniz é artista plástico. Vive e trabalha em Nova York há mais de 20 anos.


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