São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NOVO CENÁRIO
Partidos chilenos começam debate sobre "democracia imperfeita", a fim de desfazer herança do regime militar
Caso Pinochet faz Chile rever transição

CLÓVIS ROSSI
enviado especial a Santiago

É uma clara ironia da História: o general Augusto Pinochet, embora involuntariamente, está sendo o agente do processo de revisão da institucionalidade que legou ao Chile ao terminar seus anos de ditadura (1973 a 90).
Essa situação ficou clara nos dois dias de intensas negociações entre todos os partidos políticos representados no Senado para decidir se constituiriam ou não ou comissão multipartidária para viajar a Londres e reforçar assim a missão diplomática do chanceler José Miguel Insulza.
O objetivo era claro: dar às autoridades britânicas uma demonstração de que todo o arco político chileno (pelo menos o representado no Congresso) prefere que o general volte ao Chile, em vez de ser extraditado para a Espanha, para ser julgado sob a acusação de violações aos direitos humanos.
Mas a discussão acabou desaguando na definição de uma agenda para que o Chile deixe de ser uma "democracia imperfeita", como o classificam até expoentes da direita, herdeiros do regime militar que gerou as imperfeições.
O debate não chegou a lugar algum, mas deixou claro que, com Pinochet preso em Londres, extraditado para a Espanha ou de volta ao Chile, a agenda política prioritária será desfazer as imperfeições.
Não haverá, pois, uma delegação do Senado chileno em Londres porque socialistas e social-democratas colidiram de frente com a UDI (União Democrática Independente) e a RN (Renovação Nacional), os partidos pinochetistas.
Mas a divergência explicita a agenda política para o futuro próximo, inclusive para a campanha presidencial de 1999.
A direita fez questão de defender o que chamou de "obra" do general Pinochet, mais até que a sua própria figura. Entenda-se por "obra" um punhado de regras que atam a democracia.
O PS e o PPD (Partido pela Democracia, social-democrata), ao contrário, exigiram, para integrar a missão parlamentar, que a direita concordasse em rever os seguintes nós institucionais:
1 - A relativa predominância da Justiça Militar sobre a Civil, nos casos em que estão envolvidos militares, inclusive nos de violações aos direitos humanos;
2 - Uma revisão do papel do Cosena (Conselho de Segurança Nacional), no qual têm assento os comandantes do Exército, Marinha, Força Aérea e dos "carabineros" (a Polícia Militar). O Cosena dá aos chefes militares uma voz em assuntos de governo que não é habitual em democracias menos imperfeitas;
3 - Mudança da legislação eleitoral. Em cada circunscrição, elegem-se dois senadores, mas não necessariamente os mais votados.
Para que uma coligação eleja seus dois candidatos, é preciso que cada um tenha o dobro dos votos da coligação adversária.
Digamos que o partido A tenha dez votos e seu parceiro de coligação (o B) fique com seis, enquanto o C, da coligação contrária, leva quatro. Elegem-se o candidato do A e o do C, o que tem prejudicado os partidos governistas;
4 - A eliminação dos senadores institucionais (nomeados, não eleitos). São nove, o que dá pouco mais de 20% do total de 47, o suficiente para bloquear qualquer iniciativa de revisão da Constituição legada por Pinochet e referendada em plebiscitos realizados na total ausência de liberdades públicas.
Para os senadores direitistas, o que o PS e o PPD estão propondo é "uma chantagem", como diz Pablo Longueira, presidente da UDI.
Ou seja, querem trocar a gestão pela libertação de Pinochet pela desmontagem da "obra" do general. Mas, depois que o ministro britânico tomar uma decisão, seja qual for, a palavra "chantagem" não caberá mais e a agenda continuará de pé.
Até lá, no entanto, a tensão política vai se manter elevada. Até porque os "carabineros" dizem ter encontrado dois coquetéis Molotov com os pinochetistas que se manifestam todas as noites diante da embaixada espanhola.
Se verdadeira, a informação indica uma escalada no armamento, posto que, até agora, eram apenas pedras e paus.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.