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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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ARTIGOS

A guerra é uma falha da civilização

PETER BROOKS
ESPECIAL PARA ""LE MONDE"

O início da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914, foi um choque pavoroso para todos os europeus pensantes -e mais ainda para os intelectuais cosmopolitas fluentes em várias línguas, que viajavam com frequência e se sentiam igualmente cidadãos das culturas francesa, inglesa, italiana e alemã.
A guerra tinha se tornado algo impensável num mundo marcado pelo progresso social e econômico acelerado, assim como pelo triunfo aparente da hegemonia e dos valores europeus sobre a maior parte do planeta.
Sigmund Freud, admirador fervoroso de Sófocles e Shakespeare, formado em Paris e Viena, era um desses intelectuais.
Profundamente decepcionado e deprimido pela guerra, ele sentou-se diante de sua mesa de trabalho, no início de 1915, para tentar explicar o sentido e as implicações da guerra num ensaio que intitulou ""Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte".
A primeira parte do ensaio é inteiramente dedicada à sensação de despertar amargo após um sonho de civilização. ""Parece-nos que nunca um acontecimento destruiu tanto patrimônio precioso comum à humanidade, preocupou de tal maneira as inteligências mais esclarecidas, rebaixou tão profundamente aquilo que era elevado." Freud menciona a esperança largamente difundida de que os europeus teriam encontrado maneiras pacíficas de resolver seus conflitos.
Ele exprime seu assombro diante da barbárie desencadeada pela guerra. Destaca particularmente o paradoxo de ver Estados -movidos por um aparente desejo de monopolizar a violência, ""como se ela fosse o sal ou o tabaco"- autorizando-se, em razão das circunstâncias, a cometer formas de injustiça proibidas a seus cidadãos. Ele escreve: ""O Estado em guerra se permite todas as injustiças, todas as violências, a menor das quais desonraria o indivíduo".
Fica claro, porém, que, para Freud, a ascensão da violência, da traição e da inumanidade que anda de par em par com a guerra também pode ser explicada. De fato, a psicanálise vincula a existência de seres humanos civilizados e de sociedades bem ordenadas à renúncia das formas mais ""primitivas" de satisfação dos instintos. Todo indivíduo obrigado a agir em conformidade com preceitos morais que reprimem seus desejos instintivos ""vive psiquicamente acima de seus meios".
Vista sob essa perspectiva, a guerra provoca a derrocada da renúncia e da repressão sobre as quais se fundamenta a civilização e das quais dependem suas realizações futuras. Com isso, ""todas as aquisições morais se desfazem em pouco tempo, e, em seu lugar, ficam apenas as atitudes psíquicas mais primitivas, mais antigas, mais brutais".
O mais interessante e o mais desestabilizador nesse ensaio talvez seja o que Freud diz sobre a mudança que a guerra induz na atitude das pessoas com relação à morte. A civilização é, em boa parte, fundamentada na consideração dada aos mortos, atitude de deferência e de temor cuja origem se encontra, sem dúvida, na experiência da perda de entes queridos. Assim, a civilização atribui um lugar àquilo que gostaríamos de expulsar de nossa vida: a realidade de nossa própria morte.
Mas a chegada da guerra destrói esse lugar e nos faz retroceder à postura primitiva, na qual negamos a realidade de nossa morte e desejamos a morte de nossos inimigos. A guerra ""leva embora as camadas de sedimento depositadas pela civilização e deixa subsistindo dentro de nós apenas o homem primitivo. Ela nos impõe novamente uma atitude de herói que não acredita na possibilidade de sua própria morte; ela nos mostra, nos estrangeiros, inimigos que precisamos derrotar ou cuja morte é preciso desejar; nos recomenda que mantenhamos a calma na presença da morte de pessoas amadas".
A decepção e a depressão suscitadas pela guerra (que, evidentemente, ainda iria se arrastar por mais quatro anos) acabaram por levar Freud a se indagar se não corremos o risco de sermos forçados a ceder a essa volta a um primitivismo emocional.
""Não faríamos bem em reconhecer que nossa atitude com relação à morte, tal como ela decorre de nossa vida civilizada, nos ultrapassa do ponto de vista psicológico, e que seria preferível para nós nos abstrairmos dessa atitude e nos curvarmos diante da verdade?"
Pensamento amargo para qualquer apóstolo da civilização européia moderna. E a Grande Guerra de fato imprimiu uma nova inflexão ao pensamento de Freud, que se tornou mais sombrio, obrigando-o, particularmente, a dedicar mais atenção à agressão e ao sadismo, o que o levou a descobrir o desejo de morte como componente fundamental da vida instintiva do homem.
A guerra é uma tragédia da civilização. Pelo menos, porém, ela pode contribuir à reflexão sobre a psicologia humana -em seus aspectos mais trágicos.

"Danos colaterais"
A visão dos Estados Unidos da América em guerra no raiar do século 21 é um choque para muitos de nós. Como os europeus em 1914, tínhamos terminado por acreditar que nosso país tivesse renunciado à guerra como instrumento de política nacional. É possível que esta guerra seja de curta duração e eficaz.
Mas a morte vai intervir, talvez em número limitado entre nossas próprias tropas, certamente em número bem mais elevado entre aqueles aos quais chamamos nossos inimigos (se tomarmos como referência a primeira Guerra do Golfo). Casas, cidades, infra-estruturas serão destruídas, e veremos a fome, as doenças, a miséria nos campos de refugiados e orfanatos.
A grande ausente da maior parte das discussões sobre a segunda Guerra do Golfo é a consciência, por menor que seja, do custo humano da guerra. O que é totalmente omitido do discurso político atual é o reconhecimento do caráter obsceno da guerra. Como se tivéssemos regredido, sem perceber, para aquela forma primitivista de pensar a morte que Freud identificou: nós mesmos devemos ser heróis, e a morte de nossos inimigos é altamente desejável.
Não coloco em dúvida o desejo de nossos dirigentes de reduzir as perdas humanas ao mínimo e de controlar, na medida do possível, os chamados ""danos colaterais" -doce eufemismo com o qual designamos as inevitáveis vítimas civis mortas ou feridas por engano. Mas seria mais honesto abordar aberta e totalmente a relação que temos com a morte.
A guerra talvez seja um fracasso na resolução de um conflito por meios pacíficos. Ela é também uma espécie de falha da civilização.


Peter Brooks, 64, é professor de literatura comparada na Universidade Yale (Connecticut, EUA).
Tradução de Clara Allain


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