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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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CRIANÇAS

Conflito no Iraque invade o mundo de meninos de até 4 anos e provoca dúvida, angústia e o temor de ver uma bomba cair no quarto

No fogo cruzado

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

João atende o telefone. É Francisco. Deseja convidar o amigo para um teatro. No meio do papo, porém, o assunto muda.
- Você viu?, pergunta Francisco. A guerra começou.
- Aqui?!?
- Não, no Iraque. Muito longe daqui. Bem pra lá de Paris.
Como João, Francisco tem apenas 4 anos e mora num bairro nobre de São Paulo. Nunca visitou Paris, mas sabe que é longe porque a avó costuma ir à cidade.
"Fiquei surpresa quando ouvi o diálogo", diz a artista plástica Mariana Marcondes, 29, mãe do menino. "Francisco só comenta com João coisas que de fato lhe importam. Não achei que a guerra o preocupasse. Na verdade, julgava que meu filho ainda não pudesse entender o conflito como algo real. Pelo jeito, me enganei..."
De um modo ou de outro, a ofensiva contra o Iraque está abalando também o cotidiano infantil. Crianças paulistanas manifestam, desde o primeiro bombardeio em Bagdá, dúvidas e medo diante do confronto.
"Francisco quase não assiste à TV", explica Mariana. "Em compensação, escuta nossas conversas e espia as fotos dos jornais e das revistas que assinamos. Adora todas aquelas cenas de navios, aviões e soldados. Deve ser principalmente assim, por caminhos visuais, que a idéia da guerra se constrói na cabecinha dele."
A artista plástica, entretanto, não pretende privar o garoto das imagens. "No máximo, irei censurar as mais chocantes. Não vou fingir que vivemos em um conto de fadas."
Se Francisco apregoa que o Iraque é longe, Aline Mayumi Kanô, 10, desconfia do contrário. "Estão jogando por lá uns mísseis imensos, que podem atingir o meu quarto." Não podem, não. "Claro que podem. Só não atingiriam se Bagdá ficasse do outro lado do mundo." Mas fica. "Sério? Pensei que o outro lado do mundo não fosse tão perto..."
O colégio de classe média que Aline frequenta -o Montessori Santa Terezinha, no Jabaquara (zona sul)- abriu espaço para a guerra em sala de aula. "Resolvemos estimular as discussões depois de notarmos que os alunos, mesmo os menorzinhos, se mostravam inquietos com a invasão anglo-americana", afirma Nair Roseira, 52, coordenadora pedagógica.
Os debates, conduzidos por professores da terceira série em diante, acalmaram um pouco os ânimos. Geraram, ainda, uma porção de colagens, redações e desenhos sobre o tema. Os estudantes os produziram como uma espécie de catarse, e a escola os espalhou pelos corredores.
"Essa guerra está me deixando louca", revelou Aline no texto-desabafo que escreveu há cinco dias [leia-o acima". Mal o exibiu à Folha, a menina ensinou: "O Bush arrumou briga com o Saddam por três razões -petróleo, religião e vingança".
Vingança? "Lógico. Quatro anos atrás, o pai do Bush guerreou no Iraque e perdeu. O Bush filho se zangou. Saiu perguntando o motivo da derrota. Nem o Saddam nem o velho Bush responderam. O Bush filho, então, declarou nova guerra para vingar o pai."
Outra aluna do colégio -Fernanda de Paola Rodrigues, 9- teme que o ditador iraquiano decida usar o Brasil como esconderijo. "Se o doido vier, a bagunça vem junto."
No entanto, o que realmente a incomoda são as armas químicas. "Morro de pavor." Pavor que a fez abandonar o sonho de viajar à Disney. "Arma, sei bem o que é. Química, sei mais ou menos. Tem relação com remédio, certo? Imagine unir as duas coisas... Deve provocar um estrago terrível."

Baleados
Na escola estadual José Raul Poletto, encontra-se igualmente uma série de referências à guerra. Ilustrações e poemas sobre o conflito se destacam em murais do pátio. "Nossos meninos os criaram, incentivados pelos professores", conta a vice-diretora Maria Aparecida dos Santos, 39. Com 1.700 estudantes, o colégio se localiza no violento e pobre Jardim Ângela (zona sul).
Um dos poemas [veja-o abaixo" confunde o leitor. "Há muito sangue/ Parece até filme:/ "Massacre de Gangues"." Os versos descrevem Bagdá ou o próprio bairro? "Ambos", resume a autora, Aline Carolina Silvestre de Jesus, 15.
A rotina do Oriente Médio e a da periferia se mesclam também nos relatos dos alunos pequenos. "Para atacar o Iraque, o avião do Bush precisa cruzar o céu do Brasil. Sem querer, pode derrubar uma bomba aqui", cogita Fernando Costa, 7. "Mas não tenho medo. Já conheço barulho de tiro."
"Eu tenho medo, sim", avisa Andréia Caroline Santana Conceição, 9. "Antes, só me preocupava quando meu irmão saía do colégio à noite. É arriscado, por causa dos bandidos. Agora que inventaram a guerra, tudo piorou. Não durmo mais direito. Tranco a porta do quarto, olho a janela, cubro a cabeça com o cobertor."
Terça-feira à tarde, balas perdidas feriram dois estudantes perto da escola. Um dos garotos, de 9 anos, atingido na nuca, está em coma. O outro, de 10, machucou o braço. Sua irmã, de 11, angustia-se. "Via as batalhas na "Casa das Sete Mulheres" e pensava: é um problema do passado. Escutava a vizinhança reclamar de tiros e não acreditava que pegariam a gente. Em uma semana, explodiu a guerra, e a bala sangrou minha família. Não dou conta de tanto perigo."

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