São Paulo, terça-feira, 30 de março de 2004

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GUERRA SEM LIMITES

Autora de livro sobre jornalista americano morto no Paquistão busca estimular conscientização política

Viúva de Pearl critica políticos e mídia

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Mariane Pearl, 36, autora de "Coração Valoroso" (ed. Objetiva), que já é um best-seller nos EUA, um livro sobre "a vida e a morte" de seu marido, Daniel Pearl, jornalista do "Wall Street Journal" morto aos 38 anos, no Paquistão, após ser seqüestrado por um grupo de extremistas islâmicos, prefere não falar muito sobre seu drama pessoal. Em vez disso, utiliza sua posição para examinar os problemas que afetam a sociedade americana.
Para ela, que é uma premiada diretora de documentários, o problema da guerra ao terror não são as políticas de George W. Bush, que não são surpreendentes, mas a falta de um debate aprofundado sobre a situação e sobre suas conseqüências. Cabe à sociedade civil estimular a conscientização política, diz, visto que a imprensa se encontra atada a seus interesses, não conseguindo apresentar ao público uma discussão imparcial sobre temas delicados.
Em 23 de janeiro de 2002, Daniel Pearl desapareceu em Karachi, no Paquistão. Seu corpo foi encontrado em maio do mesmo ano. Uma fita de vídeo com imagens dos extremistas obrigando-o a admitir que era judeu e, depois, cortando sua garganta é a maior prova de que ele foi assassinado.
O Paquistão já prendeu inúmeros suspeitos de envolvimento com o assassinato de Pearl. Ahmed Omar Sayeed Sheikh foi condenado à morte, em 2003, pelo seqüestro e pela morte de Pearl, e três de seus cúmplices pegaram prisão perpétua. Suspeita-se que Khalid Sheikh Mohammed, um dos mais importantes membros da Al Qaeda já detidos pelos americanos, também tivesse ligação com a morte do jornalista.

 

Folha - O que o livro sobre seu marido significa para a sra. hoje?
Mariane Pearl -
Decidi escrevê-lo por várias razões, algumas mais pessoais que outras. Era muito importante para mim testemunhar o que ele tinha vivido, mergulhando no tema e conversando com pessoas que realmente tinham uma idéia do que tinha ocorrido. Quero deixar claro que sou uma pessoa comum, não quero vender nada nem pretendo dar uma visão exata do que ocorreu.
Também era importante para mim falar sobre as pessoas que me ajudam em minha luta, pessoas que realmente sabem o que é a guerra ao terror. Trata-se de pessoas que estão na linha de frente e que têm muito a dizer sobre essa situação. Na verdade, queria mostrar o lado humano de uma história trágica.

Folha - Porém ainda há muitas incertezas sobre o que ocorreu?
Pearl -
A situação política geral ainda é muito complexa no Paquistão. Os paquistaneses estão tentando apresentar níveis internacionais de direitos legais, mas trata-se de algo bastante complicado porque há muitas forças que estiveram envolvidas no assassinato de Daniel que são contrárias a isso. E elas ainda são muito importantes na sociedade paquistanesa. O presidente [Pervez Musharraf] está numa situação difícil e também corre grande perigo.

Folha - A sra. discorda do modo como a guerra ao terrorismo está sendo conduzida, não é?
Pearl -
Não critico somente o presidente Bush. Creio que o país inteiro tenha um grave problema: a falta de um debate mais aprofundado sobre questões muito sérias, como a guerra. Fazer uma guerra é uma decisão grave, que traz muitas conseqüências, e não acredito que a imprensa tenha lidado corretamente com isso. Trata-se de um problema da sociedade civil americana.
A posição de Bush já era esperada. Penso que o problema não é esse, mas a ausência de um debate sério sobre tudo o que ocorre no mundo atualmente. Antes da guerra, por exemplo, ninguém mostrou claramente aos americanos que a Al Qaeda poderia tirar vantagem de um conflito no Iraque, fazendo uma campanha internacional de propaganda.
Ademais, a falta de vontade de aceitar as críticas da comunidade internacional e a ausência de um acordo com nossos maiores aliados também não foram alvo de uma discussão séria. Para mim, como isso não ocorreu, a guerra já não deveria ter sido travada.
John Kerry [virtual candidato democrata à Presidência dos EUA] talvez mude um pouco a situação, pois terá os erros de seu predecessor em mente. Em essência, todavia, ele também não alterará o quadro geral. Nenhum político é Deus. É fácil criticar os políticos, mas o que fazemos na prática? Conscientizar a sociedade de seus problemas é crucial. É por isso que resolvi escrever o livro.
Não faz sentido ficar esperando que a classe política, que está no centro do conflito de interesses que também envolve a imprensa, faça as mudanças que consideramos necessárias em nossa sociedade. Acredito que devamos fazer a nossa parte para buscar alterar esse quadro geral. Assim, penso que é muito mais importante fomentar discussões políticas e trabalhar pela conscientização da população do que ficar reclamando de tudo o que consideramos errado na sociedade.

Folha - O assassinato de seu marido foi um ataque à imprensa?
Pearl -
Sem dúvida. A mídia em geral estava num estado de choque à época e talvez não tenha percebido a importância do ocorrido. Vários outros jornalistas já foram mortos naquela região, e a imprensa teve de perceber que seu modo de trabalhar tinha mudado, porém não se aprofundou no que estava por trás da morte de Daniel. Um dos maiores problemas da mídia é confrontar suas próprias idéias, visto que há um corporativismo muito grande.
Minha relação com o "Wall Street Journal" ilustra essa situação. Seus representantes não querem participar do processo nem aceitam envolver-se na investigação do que ocorreu. Nem tudo foi esclarecido. Mesmo assim, o jornal não quer envolver-se porque há problemas políticos ligados a tudo isso. E as grandes corporações de mídia não são suficientemente independentes nem corajosas para enfrentar tudo isso.
Afinal, elas têm interesses que ultrapassam os das pessoas -muitas vezes, até os daqueles que as representam. Não podemos esquecer que a imprensa e a classe política fazem parte do mesmo jogo.


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