São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

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ARGENTINA

Em onda nacionalista, presidente faz revisão histórica, homenageia ex-combatentes e diz que "causa é justa"

Kirchner retoma apelo pelas Malvinas

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

"A Argentina e a Inglaterra parecem dois carecas lutando por um pente"
Jorge Luis Borges, autor argentino

 

Agora é a vez das Malvinas. Durante as comemorações dos 24 anos da guerra pela soberania das ilhas, o presidente argentino, Néstor Kirchner, pediu ao Reino Unido que abrisse negociações "de boa-fé" sobre a soberania do arquipélago. "Queremos recuperar as ilhas pela via do diálogo, da diplomacia e da paz, o que não significa que abaixaremos a cabeça."
Kirchner afirmou que a guerra foi um erro, uma "agressão covarde", mas que "a causa é justa". "Recuperar as ilhas é objetivo permanente e irrenunciável do povo argentino". Segundo o jornal "Clarín", as novas reivindicações argentinas "empobreceram" as relações entre Kirchner e o premiê britânico, Tony Blair.
A Guerra das Malvinas foi a última tentativa da ditadura (1976-1983) de permanecer no poder. O país sofria com inflação e desemprego crescentes e uma pressão internacional pelo respeito aos direitos humanos. O ditador argentino Leopoldo Galtieri quis retomar a colônia britânica a quase 500 quilômetros do litoral da Patagônia.
De início, funcionou. Uma multidão apoiou com fervor patriótico a guerra. Mas, com infra-estrutura mínima e soldados inexperientes, os argentinos foram vencidos facilmente pelos ingleses. A derrota acelerou o fim da ditadura.
Kirchner também gosta de investidas "patrióticas" que turbinam sua popularidade. No início, brigou com o FMI e as multinacionais. Há meses, briga com o vizinho Uruguai pela construção de fábricas de papel. No mês passado, ele transformou em feriado -e celebrou em grande estilo- o início do golpe militar de 1976.
Pela primeira vez, um presidente argentino também pediu "perdão" aos soldados que lutaram em uma guerra considerada oportunista. O discurso de Kirchner foi feito no início de abril. Ao longo do mês, não faltaram revisões históricas.
Governadores organizaram atos públicos. Em Córdoba, foi construída uma réplica da proa do navio General Belgrano, afundado pelos ingleses durante a guerra, onde morreram 323 soldados argentinos. Em Posadas, na Província de Misiones, um monumento de seis metros de altura foi inaugurado.
Um grupo de ex-combatentes pediu à Chancelaria argentina a revisão de todos os tratados e acordos firmados entre o país e a Inglaterra nos anos 90. Para reatar as relações diplomáticas, o governo argentino aceitou as restrições para exploração pesqueira e de recursos energéticos nos mares das Malvinas -principais fontes da economia do arquipélago, além da pecuária.
A atenção dos argentinos com as Malvinas mudou muito nos últimos 24 anos. Ao final do conflito e por quase dez anos, virou um tema tabu. Havia até um disfarçado alívio com a derrota, que foi responsável pela queda da ditadura militar argentina. Todos preferiram esquecer a guerra. Durante o governo de Carlos Menem, além da retomada de relações com o Reino Unido, o chanceler argentino, Guido di Tella, mandou ursinhos de pelúcia de presente para cada habitante das ilhas -cidadãos britânicos que odeiam a Argentina.
No ano passado, estreou o filme "Iluminados pelo Fogo", inspirado nas memórias de um ex-combatente, que fala da guerra e do que aconteceu com os soldados. Houve 350 suicídios de veteranos da guerra. Um número maior do que o de mortos em combate, que foram 267, se forem deixados de lado os mortos do navio General Belgrano.
O historiador argentino Luis Alberto Romero duvida que o governo leve adiante as demandas. "Desconfio muito de Kirchner, pelo tom nacionalista que dá a tudo. Não me assustaria se as coisas não fossem muito além dessas declarações."
Uma semana antes do discurso de Kirchner, o Reino Unido reiterou a soberania do arquipélago e rejeitou o pedido do governo argentino de manter negociações, com a ONU como mediadora.
Para o historiador Francisco Panizza, professor da London School of Economics, há razões políticas e econômicas para isso. "Se abrir mão da soberania, mesmo contra a vontade dos ilhéus, terá que devolver outras colônias, como Gibraltar. Hoje as ilhas também são ricas, e têm muito potencial de reservas petrolíferas."


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