São Paulo, domingo, 30 de maio de 2010

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RUBENS RICUPERO

Empate


O poder dos EUA não pode desarmar o desafio do Irã, mas basta para neutralizar a solução Brasil-Turquia

O ACORDO DE Teerã constitui até hoje a manifestação mais expressiva do potencial e, ao mesmo tempo, dos limites existentes para a afirmação de atores médios no cenário internacional. Poderia ter sido o marco histórico de nova era; por não ter obtido o endosso inequívoco das grandes potências acabou produzindo um empate. É por isso que as reações são contraditórias e indecisas.
Após o fim da União Soviética, o "momento unipolar" dos EUA começou com êxito, sob Bush pai e a estratégia de coalizões de geometria variável para resolver desafios como o da primeira Guerra do Golfo contra Saddam Hussein.
Ao esticar o unilateralismo até a irracionalidade na invasão do Iraque, na doutrina do "Eixo do Mal" e do ataque preventivo, Bush filho estendeu demais o poder americano na hora em que a crise financeira iria desfechar-lhe golpe adicional.
Tirando as lições desse enfraquecimento, Obama se inaugurou com o elogio do multilateralismo, segundo outros, policentrismo. O anúncio foi saudado como transição para um mundo novo, mas escondia um mal-entendido de fundo.
Para os americanos, era a volta nostálgica às "coalitions of the willing" do início dos 90, as "coalizões dos voluntários" em versão livre. Os EUA admitiam precisar de ajuda, reservando-se a prerrogativa de convocar as coalizões, distribuir os papéis e conduzir as operações.
Para o Brasil e a Turquia (a Índia está satisfeita com sua parceria nuclear com os EUA e não quer pô-la em risco), o policentrismo seria a possibilidade de atores médios assumirem iniciativas autônomas em áreas como o programa nuclear iraniano, antes reservadas às potências hegemônicas.
A palavra-chave é autonomia: a possibilidade de colaborar para a paz e segurança mesmo divergindo de Washington sobre os meios. Se as negociações de Teerã tivessem sido coordenadas com os americanos, a reação dos Estados Unidos seria acolhedora, mas o Irã não teria provavelmente concordado com as exigências adicionais.
O mal-entendido de substância encontrou expressão formal de um lado na provocação triunfalista dos braços erguidos em gesto de vitória futebolística; do outro, no despeito com que Hillary Clinton não esperou secar a tinta das assinaturas do acordo para fulminá-lo com sanções meio cruas.
A ordem internacional é sempre a expressão de um poder. Hoje, contudo, como escreveu Celso Lafer, o poder está dissociado da capacidade de impor ordem legítima.
Ao invocar o risco nuclear para invadir o Iraque, o que era falso, e nada fazer no caso da Coreia do Norte, quando o risco era verdadeiro, Bush gerou as condições do impasse atual. Demonstrou ao Irã a vantagem de ter a bomba, ao mesmo tempo em que removia de cena o Iraque de Saddam, único contrapeso à afirmação regional de Teerã.
O poder dos EUA não dá para desfazer o mal feito e desarmar o desafio à ordem do programa nuclear iraniano, mas é suficiente para neutralizar a solução do Brasil e da Turquia. Lembra os empates dos seringueiros de Chico Mendes contra os pecuaristas do Acre. Como não se produz ordem nova, ninguém ganha: o poder de cada um basta apenas para anular o do outro.


RUBENS RICUPERO, 73, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, passa a escrever quinzenalmente, aos domingos, neste espaço.


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