São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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SAÚDE

Para médica, é mais fácil temer doenças distantes e de transmissão difícil

Gripe aviária ofusca medo de males mais conhecidos

ABIGAIL ZUGER

O ritual anual do terror nas manchetes está sendo reencenado em consultórios médicos em toda parte, em tempo para o Halloween. No ano passado, o medo era provocado pela vacina antigripe. alguns anos atrás, o bicho-papão era o antraz ou a varíola. Alguns anos antes disso, era a chamada "bactéria carnívora". Ainda antes disso, o vírus Ebola e assim por diante, retrocedendo até o passado distante. Neste ano, o grande perigo é a gripe aviária.
"Estava atravessando a Terceira Avenida ontem e tossindo tanto que tive de parar. Quase não consegui atravessar", disse-me um paciente. "Estou com medo de pegar a gripe do frango."
Olhei para ele, mas não disse nada. O que poderia dizer? Ele fuma dois maços de cigarros por dia há 50 anos. Há dez anos, atravessa a Terceira Avenida tossindo, chiando, ofegante. Seu enfisema pulmonar não vai melhorar, mas quem sabe pudesse parar de se agravar se ele parasse de fumar.
Mas meu paciente deixou claro há tempo que isso não vai acontecer. Quando se trata da questão do cigarro e da sua saúde, seu lema, aparentemente, é: "O que, eu vou me preocupar com isso?".
Mas a gripe aviária é um motivo de medo, uma coisa concreta da qual se pode falar. Tão assustadora, mas, ao mesmo tempo, tão agradavelmente distante. Tudo contabilizado, uma experiência inteiramente satisfatória em termos de medo com a saúde. Tão diferente da verdadeira doença do paciente em questão.
Os filmes de terror causam pesadelos às crianças. As notícias assustadoras sobre doenças conferem aos adultos a capacidade extraordinária de ignorar o que é imediato em favor do distante, de escapar do real (e verdadeiramente assustador) para um medo de tipo muito mais fácil de enfrentar.
Há alguns anos, uma jovem aguardou para ser atendida em nosso consultório, após o horário de funcionamento. Ela era paciente de um de meus colegas, mas não quis esperar pela consulta marcada com ele -precisava falar com um médico logo.
"Estou com medo de ter a doença de Lyme", ela me disse. "Tenho todos os sintomas. Acho que preciso de tratamento."
"Mas você tem Aids", falei.
"Sinto cansaço, ando tendo febre e suando muito. Não sinto fome. Não consigo pensar direito. Ando perdendo tanto peso!"
"Mas você tem Aids", repeti. "E não quer se medicar. É por isso que você se sente tão mal."
"Estou realmente assustada com a doença de Lyme", ela falou. "Preciso de tratamento."
"Se você quer sentir medo, que tal pensar na Aids que você não está tratando?", perguntei.
Olhamos uma para a outra. Era um impasse. O fato de a lógica estar do meu lado não fazia diferença nenhuma: evidentemente, o real era um pouco real demais para ela. Era muito melhor encontrar outra doença com a qual se assustar, se obcecar.
A paciente acabou coagindo meu colega a lhe aplicar exames para averiguar a presença da doença de Lyme e a tratá-la, apesar de os exames terem dado resultados negativos. Ela decidiu, então, que seus sintomas poderiam ter origem num tumor cerebral. E assim ela continuou até, finalmente, morrer de Aids.
De quatro pacientes que recebi em apenas uma hora na semana passada, três comentaram estar com medo da gripe aviária. Eu os tranqüilizei, mas há várias coisas que eu não lhes disse.
O que eu não disse foi o seguinte: se você quer sentir medo, que tal pensar nessa sua dependência de drogas que você acha que eu desconheço? E que tal o fato de você estar com quase 50 quilos acima de seu peso ideal? E o que dizer do fato de que, dentro de alguns meses, o Medicaid vai parar de pagar a medicação cara que você usa? E que ninguém sabe quanto vai custar a parte do tratamento que você terá de pagar de seu próprio bolso? Eu também não disse: se você quer um motivo para sentir medo, que tal a Klebsiella, resistente a drogas, que está por toda parte aqui mesmo neste hospital -uma bactéria comum e ordinária que já se tornou resistente a tantos antibióticos que fomos obrigados a colocar em uso outra vez alguns que tínhamos deixado de empregar 30 anos atrás porque são tão tóxicos.
A Klebsiella é uma bactéria assustadora de verdade. Está presente em hospitais de todo o país. Já deve ter matado mil vezes mais pessoas do que a gripe aviária.
Mas não se ouve falar muito em nossa Klebsiella. Como nossos maus hábitos e nossas confusões desanimadoras e insolúveis com o seguro-saúde, nossas bactérias resistentes a antibióticos estão conosco, aqui e agora mesmo. Aparentemente, falta-lhe o drama que rende manchetes realmente assustadoras ligadas à saúde.
O problema desses problemas todos é que eles são reais demais.


Abigail Zuger é médica. Seu texto foi originalmente publicado pelo diário "The New York Times".

Tradução de Clara Allain


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