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SAÚDE
Para médica, é mais fácil temer doenças distantes e de transmissão difícil
Gripe aviária ofusca medo de males mais conhecidos
ABIGAIL ZUGER
O ritual anual do terror nas
manchetes está sendo reencenado em consultórios médicos em
toda parte, em tempo para o Halloween. No ano passado, o medo
era provocado pela vacina antigripe. alguns anos atrás, o bicho-papão era o antraz ou a varíola.
Alguns anos antes disso, era a
chamada "bactéria carnívora".
Ainda antes disso, o vírus Ebola e
assim por diante, retrocedendo
até o passado distante. Neste ano,
o grande perigo é a gripe aviária.
"Estava atravessando a Terceira
Avenida ontem e tossindo tanto
que tive de parar. Quase não consegui atravessar", disse-me um
paciente. "Estou com medo de
pegar a gripe do frango."
Olhei para ele, mas não disse
nada. O que poderia dizer? Ele fuma dois maços de cigarros por dia
há 50 anos. Há dez anos, atravessa
a Terceira Avenida tossindo,
chiando, ofegante. Seu enfisema
pulmonar não vai melhorar, mas
quem sabe pudesse parar de se
agravar se ele parasse de fumar.
Mas meu paciente deixou claro
há tempo que isso não vai acontecer. Quando se trata da questão
do cigarro e da sua saúde, seu lema, aparentemente, é: "O que, eu
vou me preocupar com isso?".
Mas a gripe aviária é um motivo
de medo, uma coisa concreta da
qual se pode falar. Tão assustadora, mas, ao mesmo tempo, tão
agradavelmente distante. Tudo
contabilizado, uma experiência
inteiramente satisfatória em termos de medo com a saúde. Tão
diferente da verdadeira doença
do paciente em questão.
Os filmes de terror causam pesadelos às crianças. As notícias assustadoras sobre doenças conferem aos adultos a capacidade extraordinária de ignorar o que é
imediato em favor do distante, de
escapar do real (e verdadeiramente assustador) para um medo de
tipo muito mais fácil de enfrentar.
Há alguns anos, uma jovem
aguardou para ser atendida em
nosso consultório, após o horário
de funcionamento. Ela era paciente de um de meus colegas,
mas não quis esperar pela consulta marcada com ele -precisava
falar com um médico logo.
"Estou com medo de ter a doença de Lyme", ela me disse. "Tenho
todos os sintomas. Acho que preciso de tratamento."
"Mas você tem Aids", falei.
"Sinto cansaço, ando tendo febre e suando muito. Não sinto fome. Não consigo pensar direito.
Ando perdendo tanto peso!"
"Mas você tem Aids", repeti. "E
não quer se medicar. É por isso
que você se sente tão mal."
"Estou realmente assustada
com a doença de Lyme", ela falou.
"Preciso de tratamento."
"Se você quer sentir medo, que
tal pensar na Aids que você não
está tratando?", perguntei.
Olhamos uma para a outra. Era
um impasse. O fato de a lógica estar do meu lado não fazia diferença nenhuma: evidentemente, o
real era um pouco real demais para ela. Era muito melhor encontrar outra doença com a qual se
assustar, se obcecar.
A paciente acabou coagindo
meu colega a lhe aplicar exames
para averiguar a presença da
doença de Lyme e a tratá-la, apesar de os exames terem dado resultados negativos. Ela decidiu,
então, que seus sintomas poderiam ter origem num tumor cerebral. E assim ela continuou até, finalmente, morrer de Aids.
De quatro pacientes que recebi
em apenas uma hora na semana
passada, três comentaram estar
com medo da gripe aviária. Eu os
tranqüilizei, mas há várias coisas
que eu não lhes disse.
O que eu não disse foi o seguinte: se você quer sentir medo, que
tal pensar nessa sua dependência
de drogas que você acha que eu
desconheço? E que tal o fato de
você estar com quase 50 quilos
acima de seu peso ideal? E o que
dizer do fato de que, dentro de alguns meses, o Medicaid vai parar
de pagar a medicação cara que
você usa? E que ninguém sabe
quanto vai custar a parte do tratamento que você terá de pagar de
seu próprio bolso? Eu também
não disse: se você quer um motivo
para sentir medo, que tal a Klebsiella, resistente a drogas, que está
por toda parte aqui mesmo neste
hospital -uma bactéria comum
e ordinária que já se tornou resistente a tantos antibióticos que fomos obrigados a colocar em uso
outra vez alguns que tínhamos
deixado de empregar 30 anos
atrás porque são tão tóxicos.
A Klebsiella é uma bactéria assustadora de verdade. Está presente em hospitais de todo o país.
Já deve ter matado mil vezes mais
pessoas do que a gripe aviária.
Mas não se ouve falar muito em
nossa Klebsiella. Como nossos
maus hábitos e nossas confusões
desanimadoras e insolúveis com
o seguro-saúde, nossas bactérias
resistentes a antibióticos estão conosco, aqui e agora mesmo. Aparentemente, falta-lhe o drama que
rende manchetes realmente assustadoras ligadas à saúde.
O problema desses problemas
todos é que eles são reais demais.
Abigail Zuger é médica. Seu texto foi
originalmente publicado pelo diário
"The New York Times".
Tradução de Clara Allain
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