São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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ARTIGO

O 26 de novembro em Mumbai

A violência não é estranha à Índia moderna, tampouco prerrogativa dos indianos islâmicos

JOHN KEAY
ESPECIAL PARA A FOLHA

COM A carnificina desta semana em Mumbai, o terrorismo fez mais vítimas na Índia nos últimos 18 meses do que nos ataques de 11 de Setembro nos EUA. Excetuado um ataque ao Taj Mahal propriamente dito, os Rambos atuais dificilmente poderiam ter escolhido alvos mais prestigiosos que o velho Bombay Taj Hotel, e seu alto anexo moderno, e o Oberoi, ainda mais elevado. Agora a Índia também tem suas torres gêmeas. Mas por que a Índia? Por que a matança indiscriminada na terra de Gandhi, que reverenciava a não-violência, e de Jawaharlal Nehru e sua democracia laica cuidadosamente nutrida?
Antes de saltarmos a conclusões sobre o contágio mundial do islamismo pós-Iraque, vale a pena recordar que a violência não é estranha à Índia moderna, tampouco é prerrogativa dos muçulmanos indianos. Atrocidades sectárias e assassinatos políticos são tão comuns no país quanto eleições. Gandhi foi morto a tiros por um fanático nacionalista hindu, Indira Gandhi foi assassinada por seus guarda-costas e Rajiv Gandhi foi morto em atentado suicida por um tamil (um hindu).
Mais recentemente, não foram os muçulmanos que promoveram o pogrom de 2002 nas cidades do Estado de Gujarat -na verdade eles foram as vítimas desses ataques, e mais de 2.000 muçulmanos pereceram por obra de assassinos hindus que não foram levados à Justiça. Em 1984, os sikhs em Déli foram alvo de agressão semelhante depois do assassinato de Indira Gandhi; os agressores hindus estavam armados de listas de eleitores (e facas de açougueiro) para ajudá-los a identificar as casas dos sikhs.
Usar a expressão "terrorismo de Estado" seria forte demais, mas, se as ações das forças de segurança indianas na Caxemira fossem levadas ao mesmo escrutínio externo das "forças de paz" chinesas no Tibete, o mundo se inclinaria menos a procurar fora do país as origens das mais recentes atrocidades. Nova Déli, graças às suas credenciais democráticas, tradições laicas e mercados promissores, desfruta dos benefícios da duplicidade ocidental quando se trata de distribuir culpa. Mas isso não significa que a ameaça se reduza.
E o mesmo se aplica à obsessão com supostas "organizações" como Al Qaeda, Lakshar-e-Taiba e Mujahedin do Deccan. Os termos podem ser uma conveniência epistolar. Conceder-lhes coerência estrutural sustenta o setor de segurança, mas para todos os demais efeitos é uma prática enganosa. Ao contrário do Exército Republicano Irlandês (IRA) ou do ETA basco, não estamos falando de organizações paramilitares decididas a redesenhar fronteiras nacionais ou redefinir identidades nacionais. Em vez disso, elas buscam derrubar de vez os Estados, sobretudo no subcontinente indiano.

Partilha
É fácil esquecer que os países do sul da Ásia ainda são entidades contenciosas. Passados 60 anos, indianos, paquistaneses e bengalis têm 1947 não como seu ano de "independência" do jugo britânico mas como o ano da "partilha" que os separou.
Na metade do ano anterior, uma missão diplomática de Londres havia conquistado a aquiescência de Nehru e de Mohammed Ali Jinnah, os líderes do Congresso Nacional Indiano e da Liga Muçulmana, a um arranjo constitucional que teria preservado praticamente todo o sul da Ásia como um vasto Estado unificado. Assim, não teria existido um Paquistão soberano, e muito menos Bangladesh (que se separou do Paquistão em 1971). A antiga Índia britânica esteve muito perto de preservar a soberania indivisa.
Mas suspeitas mútuas solaparam o acordo, e a impaciência britânica fez com que uma divisão fosse acatada. O mapa resultante tomou por base localidades contíguas de maioria muçulmana ou não-muçulmana. Era a receita do desastre. As fronteiras traçadas às pressas e não policiadas foram atravessadas por milhões de migrantes sob massacres de escala inédita em tempos de paz. Disputas intermináveis sobre a Caxemira e os ativos compartilhados pelos dois Estados, como a água dos rios, ficaram sem solução, e os novos países iniciaram uma corrida armamentista ruinosamente cara, interrompida apenas por confrontos militares abertos.
A partilha deixou a parte do leão de tudo que a região abrigava para a República da Índia, e deu a ela também uma vasta minoria muçulmana, quase toda pobre e órfã de representação política. No Paquistão, a coesão religiosa era maior, mas as divisões sociais persistiam. Foram os massacres e as migrações em massa da partilha que deixaram as cicatrizes mais fundas, e é isso, mais que a Palestina, o Iraque ou a Al Qaeda, que dá ao terrorismo do sul da Ásia dimensão internacional.
Muitos dos migrantes da partilha continuaram a migrar para o golfo Pérsico, o Reino Unido e a América do Norte. O primeiro vôo transatlântico a ser explodido foi um jumbo da Air India abatido por separatistas sikh sediados no oeste do Canadá em 1985. Mais recentemente, militantes islâmicos paquistaneses e da Caxemira radicados no Reino Unido montaram ataques em Israel e no Iraque, bem como em Londres.
Os responsáveis pelos tumultos em Mumbai nesta semana podem bem ter sido recrutados em Dubai, financiados com dinheiro vindo da Europa, treinados nas regiões de fronteira do Afeganistão -e ter nascido em qualquer um desses lugares. A globalização torna o terrorismo mais efetivo, mas não mais coerente. Antes do Taj e do Oberoi, o último hotel do sul da Ásia a ser destruído foi o Marriott de Islamabad. Para os jovens do sul da Ásia desprovidos de raízes, o islamismo militante dá dignidade a um desafio nascido da alienação, cujo objetivo é desacreditar governos de forma indiscriminada, prejudicando suas economias e desestabilizando a estrutura social.
Diante da ameaça comum, Índia e Paquistão deveriam cerrar fileiras. As trocas de acusações, quer internacionais quer internas, apenas servem à lógica dos terroristas. Mas a colaboração entre os Estados do sul da Ásia poderia levar a um reconhecimento da responsabilidade que compartilham pela tragédia da partilha, e talvez a alguma forma necessária de renovação de sua associação.

JOHN KEAY é historiador e autor de uma série de livros sobre a Índia, entre eles "India, a History" (2000) e "The Great Arc: The Dramatic Tale of How India Was Mapped" (2000)

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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