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ARTIGO
O 26 de novembro em Mumbai
A violência não é estranha à Índia moderna, tampouco prerrogativa dos indianos islâmicos
JOHN KEAY
ESPECIAL PARA A FOLHA
COM A carnificina desta
semana em Mumbai, o
terrorismo fez mais vítimas na Índia nos últimos 18
meses do que nos ataques de 11
de Setembro nos EUA. Excetuado um ataque ao Taj Mahal
propriamente dito, os Rambos
atuais dificilmente poderiam
ter escolhido alvos mais prestigiosos que o velho Bombay Taj
Hotel, e seu alto anexo moderno, e o Oberoi, ainda mais elevado. Agora a Índia também
tem suas torres gêmeas. Mas
por que a Índia? Por que a matança indiscriminada na terra
de Gandhi, que reverenciava a
não-violência, e de Jawaharlal
Nehru e sua democracia laica
cuidadosamente nutrida?
Antes de saltarmos a conclusões sobre o contágio mundial
do islamismo pós-Iraque, vale a
pena recordar que a violência
não é estranha à Índia moderna, tampouco é prerrogativa
dos muçulmanos indianos.
Atrocidades sectárias e assassinatos políticos são tão comuns
no país quanto eleições. Gandhi
foi morto a tiros por um fanático nacionalista hindu, Indira
Gandhi foi assassinada por seus
guarda-costas e Rajiv Gandhi
foi morto em atentado suicida
por um tamil (um hindu).
Mais recentemente, não foram os muçulmanos que promoveram o pogrom de 2002
nas cidades do Estado de Gujarat -na verdade eles foram as
vítimas desses ataques, e mais
de 2.000 muçulmanos pereceram por obra de assassinos hindus que não foram levados à
Justiça. Em 1984, os sikhs em
Déli foram alvo de agressão semelhante depois do assassinato
de Indira Gandhi; os agressores
hindus estavam armados de listas de eleitores (e facas de açougueiro) para ajudá-los a identificar as casas dos sikhs.
Usar a expressão "terrorismo
de Estado" seria forte demais,
mas, se as ações das forças de
segurança indianas na Caxemira fossem levadas ao mesmo escrutínio externo das "forças de
paz" chinesas no Tibete, o
mundo se inclinaria menos a
procurar fora do país as origens
das mais recentes atrocidades.
Nova Déli, graças às suas credenciais democráticas, tradições laicas e mercados promissores, desfruta dos benefícios
da duplicidade ocidental quando se trata de distribuir culpa.
Mas isso não significa que a
ameaça se reduza.
E o mesmo se aplica à obsessão com supostas "organizações" como Al Qaeda, Lakshar-e-Taiba e Mujahedin do Deccan. Os termos podem ser uma
conveniência epistolar. Conceder-lhes coerência estrutural
sustenta o setor de segurança,
mas para todos os demais efeitos é uma prática enganosa.
Ao contrário do Exército Republicano Irlandês (IRA) ou do
ETA basco, não estamos falando de organizações paramilitares decididas a redesenhar
fronteiras nacionais ou redefinir identidades nacionais. Em
vez disso, elas buscam derrubar
de vez os Estados, sobretudo no
subcontinente indiano.
Partilha
É fácil esquecer que os países
do sul da Ásia ainda são entidades contenciosas. Passados 60
anos, indianos, paquistaneses e
bengalis têm 1947 não como
seu ano de "independência" do
jugo britânico mas como o ano
da "partilha" que os separou.
Na metade do ano anterior,
uma missão diplomática de
Londres havia conquistado a
aquiescência de Nehru e de
Mohammed Ali Jinnah, os líderes do Congresso Nacional Indiano e da Liga Muçulmana, a
um arranjo constitucional que
teria preservado praticamente
todo o sul da Ásia como um vasto Estado unificado. Assim, não
teria existido um Paquistão soberano, e muito menos Bangladesh (que se separou do Paquistão em 1971). A antiga Índia
britânica esteve muito perto de
preservar a soberania indivisa.
Mas suspeitas mútuas solaparam o acordo, e a impaciência britânica fez com que uma
divisão fosse acatada. O mapa
resultante tomou por base localidades contíguas de maioria
muçulmana ou não-muçulmana. Era a receita do desastre.
As fronteiras traçadas às
pressas e não policiadas foram
atravessadas por milhões de
migrantes sob massacres de escala inédita em tempos de paz.
Disputas intermináveis sobre a
Caxemira e os ativos compartilhados pelos dois Estados, como a água dos rios, ficaram sem
solução, e os novos países iniciaram uma corrida armamentista ruinosamente cara, interrompida apenas por confrontos militares abertos.
A partilha deixou a parte do
leão de tudo que a região abrigava para a República da Índia,
e deu a ela também uma vasta
minoria muçulmana, quase toda pobre e órfã de representação política. No Paquistão, a
coesão religiosa era maior, mas
as divisões sociais persistiam.
Foram os massacres e as migrações em massa da partilha
que deixaram as cicatrizes mais
fundas, e é isso, mais que a Palestina, o Iraque ou a Al Qaeda,
que dá ao terrorismo do sul da
Ásia dimensão internacional.
Muitos dos migrantes da partilha continuaram a migrar para o golfo Pérsico, o Reino Unido e a América do Norte. O primeiro vôo transatlântico a ser
explodido foi um jumbo da Air
India abatido por separatistas
sikh sediados no oeste do Canadá em 1985. Mais recentemente, militantes islâmicos paquistaneses e da Caxemira radicados no Reino Unido montaram
ataques em Israel e no Iraque,
bem como em Londres.
Os responsáveis pelos tumultos em Mumbai nesta semana
podem bem ter sido recrutados
em Dubai, financiados com dinheiro vindo da Europa, treinados nas regiões de fronteira do
Afeganistão -e ter nascido em
qualquer um desses lugares.
A globalização torna o terrorismo mais efetivo, mas não
mais coerente. Antes do Taj e
do Oberoi, o último hotel do sul
da Ásia a ser destruído foi o
Marriott de Islamabad. Para os
jovens do sul da Ásia desprovidos de raízes, o islamismo militante dá dignidade a um desafio
nascido da alienação, cujo objetivo é desacreditar governos de
forma indiscriminada, prejudicando suas economias e desestabilizando a estrutura social.
Diante da ameaça comum,
Índia e Paquistão deveriam
cerrar fileiras. As trocas de acusações, quer internacionais
quer internas, apenas servem à
lógica dos terroristas. Mas a colaboração entre os Estados do
sul da Ásia poderia levar a um
reconhecimento da responsabilidade que compartilham pela tragédia da partilha, e talvez
a alguma forma necessária de
renovação de sua associação.
JOHN KEAY é historiador e autor de uma série
de livros sobre a Índia, entre eles "India, a History" (2000) e "The Great Arc: The Dramatic Tale of How India Was Mapped" (2000)
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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