São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

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ANÁLISE

Uma situação muito estranha


Desde a guerra que tirou Saddam Hussein do poder, no primeiro semestre de 2003, não se vê uma distância tão grande entre a realidade no Iraque e o retrato pintado pelos governos americano e britânico

Os xiitas não foram às urnas ontem pelo simples prazer de correr o risco de serem mortos por granadas ou ataques suicidas, mas porque seus líderes lhes disseram que, pela primeira vez, eles terão acesso ao poder real


PATRICK COCKBURN
DO ""INDEPENDENT", EM BAGDÁ

"Que eleição extraordinária", comentou Adnan Pachachi, político respeitado no Iraque e homem que, depois de assistir a meio século de guerras e ditadura em seu país, não se impressiona com qualquer coisa.
É um caso deveras estranho. Desde a guerra que tirou Saddam Hussein do poder, no primeiro semestre de 2003, não se vê uma distância tão grande entre a realidade política no Iraque e o retrato pintado pelos governos americano e britânico.
A eleição do domingo foi retratada como se Washington e Londres tivessem finalmente conseguido alcançar sua meta de levar a democracia ao Iraque. Na realidade, após a invasão de 2003 os EUA adiaram as eleições para um futuro distante.
A deposição de Saddam Hussein se dera tão rapidamente que a administração americana pensava poder governar o Iraque diretamente, com pouca participação iraquiana.
Foi apenas no outono setentrional de 2003 que os EUA fizeram duas descobertas desagradáveis. A primeira foi que os ataques guerrilheiros nas regiões sunitas do Iraque aumentavam a cada dia que passava. Eles se limitavam, supostamente, ao chamado Triângulo Sunita, uma descrição que soa tranqüilizadora, mas que, na prática, designa uma área maior do que muitos países europeus.
A segunda foi que Paul Bremer, então chefe da Autoridade Provisória da Coalizão -liderada pelos EUA-, demorou a compreender que um clérigo xiita idoso, que vivia numa beco da cidade sagrada de Najaf, tinha mais influência no país do que qualquer um dos ex-exilados iraquianos subordinados aos EUA.
Em junho de 2003, o grão-aiatolá Ali al Sistani, o mais influente líder xiita, lançou uma ""fatwa", ou decreto religioso, dizendo que aqueles que redigissem a Constituição do Iraque deveriam ser eleitos, e não indicados pelos EUA e o Conselho de Governo do Iraque, cujos membros tinham sido indicados por Washington.
Em novembro de 2003 ele lançou mais um decreto, desta vez dizendo que o governo de transição deveria ser eleito.
Os líderes xiitas acreditavam ter cometido um erro grave depois que os britânicos derrotaram o Exército turco e ocuparam o que viria a tornar-se o Iraque, na Primeira Guerra mundial. Foram os xiitas que se revoltaram contra a ocupação britânica em 1920, e a conseqüência foi que os britânicos se voltaram à comunidade sunita para governar o Iraque e que os sunitas continuaram a dominar o poder sob a monarquia, a república e o governo do ex-ditador Saddam Hussein.
A razão pela qual houve uma eleição ontem foi que os EUA, confrontados com a escalada da guerra contra os 5 milhões de sunitas, não ousaram provocar uma revolta entre os 15 milhões a 16 milhões de xiitas. O preço que pagaram foi promover uma eleição na qual os xiitas pudessem mostrar que formam a maioria no Iraque.
Mas será que a eleição de ontem vai implicar uma transferência real de poder aos xiitas? Em junho passado, a soberania iraquiana foi supostamente transferida para o governo interino de Iyad Allawi, indicado pelos EUA. A mudança não passou, em grande medida, de miragem. O governo ainda depende, para sua própria existência, da presença no país de 150 mil militares americanos.
A cobertura intensa da eleição de ontem feita pela mídia deixou na sombra vários aspectos da realidade da vida política no Iraque. A Assembléia Nacional eleita terá poderes limitados. Ela é constituída de tal forma que nenhuma comunidade tenha condições, sozinha, de dominar as outras. É possível, porém, que essa seja uma receita de paralisia, como foi no Líbano. A assembléia terá que eleger um presidente e dois vice-presidentes, e eles, por sua vez, vão nomear um primeiro-ministro e outros ministros. O candidato vitorioso será aquele que tiver menos inimigos.
Os xiitas não foram às urnas ontem pelo simples prazer de correr o risco de serem mortos por granadas ou ataques suicidas, mas porque seus líderes lhes disseram que, pela primeira vez, eles terão acesso ao poder real.
Alguns comentaristas americanos se perguntaram se Washington não poderia conservar o controle sobre o Iraque, pelo menos de maneira indireta, por meio dos curdos e dos xiitas. Juntos, as duas comunidades compõem quase 80% da população. Essa é conhecida como a ""solução dos 20%", um cenário no qual os EUA seriam capazes de enfrentar a rebelião apoiada pelos árabes sunitas, que compõem apenas 20% da população.
Embora seja temporariamente tranqüilizador para Washington e Londres, esse cenário se baseia num erro de entendimento. Os sunitas estão opondo resistência armada à ocupação americana. Os xiitas não participam da rebelião, embora o clérigo radical Moqtada al Sadr e seu Exército Mehdi tenham enfrentado os marines pelo controle de Najaf em agosto passado.
Um fator de importância fundamental na política iraquiana é que, desde a queda de Saddam Hussein, os EUA vêm sendo cada vez mais rejeitados no Iraque, com a exceção do Curdistão. Essa rejeição acontece tanto por parte dos xiitas quanto dos sunitas.
Uma pesquisa de opinião conduzida nos últimos dias pela Zogby International mostrou que 82% dos árabes sunitas querem os EUA fora do país já ou num prazo muito curto. A parcela de xiitas que querem os EUA fora do país é menor do que a de sunitas, mas ainda representa a maioria esmagadora deles: 69%. Líderes religiosos xiitas mandaram seus seguidores votarem ontem por enxergar a eleição como a maneira mais rápida de pôr fim à ocupação.
A impopularidade da presença americana em distritos xiitas é confirmada por entrevistas conduzidas nas ruas. ""Por acaso os EUA já fizeram algo por nós?" indagou um grupo de trabalhadores -todos xiitas- que descarregavam bujões de gás de um caminhão. ""Deus abençoe Saddam."
Ouvir Saddam sendo elogiado publicamente por um xiita seria algo totalmente inédito, 18 meses atrás. Todos os homens que passavam horas fazendo fila diante de postos de gasolina fizeram críticas espontâneas aos EUA, embora muitos tivessem dito que iriam votar.
O entusiasmo com que tantos xiitas compareceram às urnas ontem constitui uma faca de dois gumes. Eles o fizeram na crença de que seu voto vai se traduzir em poder. Eles não ficarão satisfeitos se a nova Assembléia Nacional sair como fotocópia do governo atual -nominalmente soberana, mas dependente em grande medida dos EUA.
O fato de que houve uma eleição vai causar boa impressão na opinião internacional, mas, no futuro imediato, muda muito pouca coisa no Iraque. O mundo está repleto de casos em que há Parlamentos devidamente eleitos pelo voto livre, mas o poder permanece em outras mãos -o Exército, os serviços de segurança, ou, como é o caso do Iraque hoje, uma potência estrangeira que ocupa o país.
Nos ex-Estados soviéticos esses casos eram descritos como ""Parlamentos Potemkin", quando a intenção era impressionar os visitantes com o aparato externo da democracia, mas os Parlamentos em questão não dispunham de autoridade real.

Tradução de Clara Allain


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