São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

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Blog iraquiano pró-EUA racha e expõe rede de intrigas

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

A história mistura as tramas dos livros de espionagem de John le Carré com as traições familiares das peças de Shakespeare. Cenário: blogosfera, mais precisamente dois blogs (diários virtuais) baseados em Bagdá e escritos pelos Fadhil, uma família de bagdalis. Personagens: Mohammed e Omar, de um lado, seu irmão Ali do outro, e o presidente Bush, entre outros. Sobe o pano.
Nas primeiras semanas de dezembro, Washington, Nova York e Los Angeles receberam a visita de dois dentistas bagdalis, Mohammed, 35, e Omar, 24, que, juntos de seu irmão do meio, o pediatra Ali Fadhil, 34, tocavam o blog IraqTheModel.
Desde a queda de Saddam Hussein, em abril de 2003, a internet foi inundada por esses diários virtuais escritos por iraquianos, finalmente livres para acessar a rede e escreverem. O pioneiro foi Salam Pax, um arquiteto homossexual, mas na sua esteira vieram milhares de blogs.
Depois de definida a data das eleições e empossado o governo provisório, nenhum deles teve tanta publicidade por aqui quanto o dos três irmãos. Contra a corrente dos sites antiguerra e com argumentos consistentes e um inglês escorreito, os três defendiam a presença dos invasores no país e a realização do pleito. Bancados pela ONG Spirit of America, Mohammed e Omar finalmente realizaram seu sonho: conhecer os EUA. Na turnê de dezembro, ciceroneados pelo vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz, deram palestra em Harvard.
Em Nova York, visitaram a redação do diário "The Wall Street Journal", que publicaria elogioso artigo escrito por Daniel Henninger, em que o subeditor de opinião do jornal citava Mohammed em frases como "Bagdá está florescendo", "vejo um prédio novo a cada dia" e "a classe média iraquiana vem aumentando". Em Los Angeles, foram o centro de uma festa do neoconservadorismo local. E tiveram de desviar o périplo para a capital americana, onde foram recebidos no Salão Oval por George W. Bush, que assegurou que os EUA não deixariam seu país enquanto "o trabalho não estivesse completo".
Tudo parecia correr bem. Até que Ali, que ficara tomando conta do blog, escreveu uma carta aberta. "É a última vez que escrevo neste site. (...) Não é uma decisão fácil, mas tenho de tomá-la. (...) Eu ainda amo a América e me sinto agradecido a todos os que nos ajudaram a ter liberdade e a construir a democracia aqui. Mas é a ação de alguns americanos que me faz sentir que estou do lado errado. Vou expor estas pessoas em público logo mais, (...) mas não conseguirei fazer isso a não ser em meu próprio blog."
A partir de então, Ali criou o Iraqi Liberal, que depois rebatizou de Free Iraqi. Nele, desde o começo do ano vem fazendo críticas constantes à ocupação americana e à condução das eleições. O que aconteceu entre a viagem e sua dissidência? "Acho que meus irmãos se expuseram a um risco desnecessário ao se encontrar com Bush", disse ele à Folha.
Os irmãos põem panos quentes. "Nós ainda colaboramos um com o outro, e você pode reparar que nosso blog traz um link para o dele e vice-versa", disse Mohammed -na verdade, a recíproca não é verdadeira; o blog de Ali não anuncia o dos irmãos. Tamanha polidez não foi suficiente para evitar que uma verdadeira rede de intrigas tomasse a blogosfera.
Nas acusações mais graves, os Fadhil foram chamados de agentes da CIA disfarçados de bagdalis a legítimos iraquianos que estariam levando dinheiro da Casa Branca para fazer propaganda.
Os irmãos -os três- se defendem das acusações. Dizem que acreditam no que escrevem e que o fato de um deles ter decidido sair e criar seu próprio blog mais "à esquerda" é outro exemplo da liberdade por que passa o Iraque.
Ali conclui: "Apesar de toda essa confusão, prefiro viver o resto de minha vida numa situação como essa em que o Iraque está agora, com todas as dificuldades, do que voltar no tempo e viver apenas um dia sob Saddam Hussein".


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