São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Índice

HAITI EM RUÍNAS

Haitianos recorrem ao vodu para encontrar soterrados

Sacerdote diz poder ajudar no resgate se pessoas ainda estiverem vivas sob escombros

Religião que chegou ao país com escravos africanos hoje convive com catolicismo; igreja admite que maioria dos seus fiéis pratica vodu


LUIS KAWAGUTI
EM BELLANTON (HAITI)

Dezessete dias após o terremoto que devastou o Haiti, a possibilidade de encontrar sobreviventes sob os escombros já é muito pequena. Mesmo assim, haitianos que ainda não perderam a esperança de reencontrar seus parentes desaparecidos estão recorrendo aos poderes de sacerdotes vodu.
"O vodu não é mau. Na maioria dos casos, nós o usamos para curar as pessoas. Desde o terremoto, as pessoas me procuram para ajudar os parentes. Se a pessoa ainda estiver viva no momento da cerimônia, ela consegue sobreviver até ser resgatada. Não podemos fazer nada se já tiver morrido", diz Exius Baptiste, 60, que é hugan, nome dado ao padre vodu.
Padre é a palavra que muitos haitianos usam como sinônimo para hugan. O vodu tem origem africana e chegou ao Haiti com os escravos negros que formaram a população majoritária do país na época colonial e que persiste até os dias de hoje. As religiões vodu e católica convivem harmoniosamente no país, e a própria Igreja Católica local admite que a maioria dos católicos também pratica o vodu.
Baptiste é um homem de hábitos e vestimentas simples, aparentemente nada o diferencia de um haitiano comum. Seu único trabalho é ser hugan, e por isso é sustentado pela comunidade de Bellanton, cidade vizinha de Porto Príncipe. Em troca, atua como um líder comunitário, aconselhando e ajudando cada membro da comunidade, por vezes até conseguindo emprego.
Para chegar ao templo onde ocorrem as cerimônias de vodu, a Folha sai de uma estrada principal e caminha por uma trilha na zona rural de Bellanton. Muitas casas no caminho ruíram por causa do terremoto. O templo é uma pequena casa cor-de-rosa, com figuras de santos pintadas nas paredes. O tremor derrubou a parede dos fundos, e pelo buraco é possível ver cruzes, um pequeno caixão e figuras rústicas de madeira, que, segundo o hugan, representam os espíritos Andezo, Cadyabosou, Digitademanbre e Bakontou, este último considerado perigoso, avisa o sacerdote.
Em um cômodo ao lado, todo branco, fica a figura de Dambala, representada por uma serpente de duas cabeças. "Dambala adora a cor branca", diz o hugan. No teto da casa ficam pendurados bonecos, cadeiras e cordas.
Baptiste está fraco devido a um problema de pressão. Ele diz que fará uma cerimônia simplificada para mostrar à Folha. As cerimônias vodu dificilmente são mostradas de forma completa aos estrangeiros.
O rito acontece em frente ao templo, sob uma cobertura feita de vigas de madeira e um teto de folhas trançadas. Lençóis estendidos protegem o hugan do vento. Ele aparece com uma panela com areia e com ela desenha no chão símbolos que representam os espíritos. É ajudado pela mulher, Helena Pierre, 52, que aparece de uma casa ao lado trazendo objetos solicitados pelo marido.
Explica depois que dessa forma consegue descobrir qual espírito está fazendo mal para determinada pessoa. Também invocando espíritos, diz que consegue a cura ou que uma pessoa sobreviva nos escombros até a chegada de socorro. Ele termina a cerimônia simples tocando uma espécie de sino e carregando uma caveira -há várias no templo, todas reais. Ele alerta que o objeto pode ser usado para o bem, mas também para fazer mal a alguma pessoa.
Baptiste diz que há muitas lendas sobre o vodu que não são reais, como a de que seria possível transformar pessoas em zumbis. Ele diz também que outro mito é o de que estrangeiros não poderiam tocar em corpos de pessoas mortas pelo terremoto, sob pena de prejudicar seus espíritos. A missão da ONU chegou a contratar haitianos para retirar corpos da rua a fim de não afrontar qualquer crença vodu.
"Os espíritos sabem que o estrangeiro está fazendo uma boa ação enterrando aqueles corpos", diz Baptiste. De acordo com ele, segundo os costumes vodu, as pessoas não podem ser enterradas nuas ou queimadas. A religião prega a reencarnação, e a queima de um cadáver poderia impedir que a pessoa desfrutasse de outra vida.


Texto Anterior: Base militar é ilha de riqueza em Porto Príncipe
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.