|
Texto Anterior | Índice
HAITI EM RUÍNAS
Haitianos recorrem ao vodu para encontrar soterrados
Sacerdote diz poder
ajudar no resgate se
pessoas ainda
estiverem vivas sob
escombros
Religião que chegou ao país com escravos africanos hoje
convive com catolicismo; igreja admite que maioria dos
seus fiéis pratica vodu
LUIS KAWAGUTI
EM BELLANTON (HAITI)
Dezessete dias após o terremoto que devastou o Haiti, a
possibilidade de encontrar sobreviventes sob os escombros
já é muito pequena. Mesmo assim, haitianos que ainda não
perderam a esperança de reencontrar seus parentes desaparecidos estão recorrendo aos
poderes de sacerdotes vodu.
"O vodu não é mau. Na maioria dos casos, nós o usamos para curar as pessoas. Desde o terremoto, as pessoas me procuram para ajudar os parentes. Se
a pessoa ainda estiver viva no
momento da cerimônia, ela
consegue sobreviver até ser
resgatada. Não podemos fazer
nada se já tiver morrido", diz
Exius Baptiste, 60, que é hugan,
nome dado ao padre vodu.
Padre é a palavra que muitos
haitianos usam como sinônimo
para hugan. O vodu tem origem
africana e chegou ao Haiti com
os escravos negros que formaram a população majoritária do
país na época colonial e que
persiste até os dias de hoje. As
religiões vodu e católica convivem harmoniosamente no país,
e a própria Igreja Católica local
admite que a maioria dos católicos também pratica o vodu.
Baptiste é um homem de hábitos e vestimentas simples,
aparentemente nada o diferencia de um haitiano comum. Seu
único trabalho é ser hugan, e
por isso é sustentado pela comunidade de Bellanton, cidade
vizinha de Porto Príncipe. Em
troca, atua como um líder comunitário, aconselhando e ajudando cada membro da comunidade, por vezes até conseguindo emprego.
Para chegar ao templo onde
ocorrem as cerimônias de vodu, a Folha sai de uma estrada
principal e caminha por uma
trilha na zona rural de Bellanton. Muitas casas no caminho
ruíram por causa do terremoto.
O templo é uma pequena casa
cor-de-rosa, com figuras de
santos pintadas nas paredes. O
tremor derrubou a parede dos
fundos, e pelo buraco é possível
ver cruzes, um pequeno caixão
e figuras rústicas de madeira,
que, segundo o hugan, representam os espíritos Andezo,
Cadyabosou, Digitademanbre
e Bakontou, este último considerado perigoso, avisa o sacerdote.
Em um cômodo ao lado, todo
branco, fica a figura de Dambala, representada por uma serpente de duas cabeças. "Dambala adora a cor branca", diz o
hugan. No teto da casa ficam
pendurados bonecos, cadeiras
e cordas.
Baptiste está fraco devido a
um problema de pressão. Ele
diz que fará uma cerimônia
simplificada para mostrar à
Folha. As cerimônias vodu dificilmente são mostradas de forma completa aos estrangeiros.
O rito acontece em frente ao
templo, sob uma cobertura feita de vigas de madeira e um teto
de folhas trançadas. Lençóis estendidos protegem o hugan do
vento. Ele aparece com uma panela com areia e com ela desenha no chão símbolos que representam os espíritos. É ajudado pela mulher, Helena Pierre, 52, que aparece de uma casa
ao lado trazendo objetos solicitados pelo marido.
Explica depois que dessa forma consegue descobrir qual espírito está fazendo mal para determinada pessoa. Também invocando espíritos, diz que consegue a cura ou que uma pessoa
sobreviva nos escombros até a
chegada de socorro. Ele termina a cerimônia simples tocando
uma espécie de sino e carregando uma caveira -há várias no
templo, todas reais. Ele alerta
que o objeto pode ser usado para o bem, mas também para fazer mal a alguma pessoa.
Baptiste diz que há muitas
lendas sobre o vodu que não são
reais, como a de que seria possível transformar pessoas em
zumbis. Ele diz também que
outro mito é o de que estrangeiros não poderiam tocar em corpos de pessoas mortas pelo terremoto, sob pena de prejudicar
seus espíritos. A missão da
ONU chegou a contratar haitianos para retirar corpos da rua a
fim de não afrontar qualquer
crença vodu.
"Os espíritos sabem que o estrangeiro está fazendo uma boa
ação enterrando aqueles corpos", diz Baptiste. De acordo
com ele, segundo os costumes
vodu, as pessoas não podem ser
enterradas nuas ou queimadas.
A religião prega a reencarnação, e a queima de um cadáver
poderia impedir que a pessoa
desfrutasse de outra vida.
Texto Anterior: Base militar é ilha de riqueza em Porto Príncipe Índice
|