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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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RELATOS DO FRONT

"Resistência não é coragem, é estupidez"

STEVEN LEE MYERS
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES",
COM A 3ª DIVISÃO DE INFANTARIA, CENTRO DO IRAQUE

Agora que os combates cessaram, ele se sente perturbado. O sargento Mark N. Redmond se lembra de ter gritado "giff", a palavra árabe para "parem", mas eles não o fizeram. Continuaram avançando.
A unidade de Redmond passou três dias e três noites combatendo pela ponte em Kifl, uma aldeia no rio Eufrates. Sob qualquer definição militar -território capturado, número de inimigos mortos, missão realizada-, a batalha de sua tropa terminou em vitória. Mas depois da vitória, no entanto, vem o repouso. E, com o repouso, chega a reflexão.
"Quero dizer, tenho uma mulher e filhos para quem voltar", disse ele, sentado em um caixote de rações no acampamento que serve de base à sua tropa, aproveitando um descanso inesperado e por isso ainda mais apreciado. "Não quero que eles pensem que sou um matador."
Os combates em torno de Kifl se atenuaram na sexta-feira, disseram oficiais na região, e o mesmo vale para boa parte da área que cerca Najaf, a cidade sagrada no rio Eufrates que a 3ª Divisão de Infantaria vem lutando por cercar em uma batalha inesperadamente feroz iniciada na noite da segunda-feira, quando a unidade de Redmond, a Tropa C, que opera sob as ordens da 1ª Brigada da divisão, atravessou o rio pela primeira vez.
Os comandantes da divisão anunciaram na sexta-feira que o efeito sufocante de um anel de cerco blindado que se expande em torno da cidade, acoplado a ataques aéreos e barragens de artilharia, havia por fim detido os esforços iraquianos de reforçar Najaf, ainda que a situação na cidade em si, localizada no centro do Iraque, continue incerta.

Lembranças incômodas
Na noite de sexta-feira, continuava a não haver um cálculo completo do número de inimigos mortos na batalha, ainda que soldados e oficiais dissessem que ele atingia no mínimo a casa das dezenas. E para alguns soldados, como Redmond, as lembranças continuam a incomodar.
"Eles simplesmente avançavam em nossa direção", afirma o sargento, descrevendo a forma pela qual os milicianos iraquianos começaram a lutar, tão logo a Tropa C atravessou a ponte de duas pistas sobre o rio Eufrates. "Para mim, parecia que estavam nos testando, mas era suicídio."
Na sexta-feira, só restavam escaramuças. As forças iraquianas dispararam morteiros contra Kifl na manhã daquele dia, mas sem efeito, segundo oficiais dos Estados Unidos -barragens da artilharia norte-americana os silenciaram rapidamente.
"Eles aprenderam que, caso se aproximem demais, coisas ruins acontecem", disse o capitão Adam J. Morrison, o oficial assistente de artilharia da brigada, na tenda cheia de areia onde o centro de operações táticas da unidade está instalado.
Boa parte do poder de fogo da brigada e da divisão se concentrou em lugar disso ao norte, com o disparo de foguetes e pedidos de ataques aéreos contra o que os oficiais descreveram como baterias de artilharia e outros alvos iraquianos. O comandante da divisão, o major-general Buford C. Blount III, disse em entrevista na quarta-feira que os esforços do Exército concentravam-se agora em reduzir a resistência das forças iraquianas na rota para Bagdá.
E, em Kifl, o esforço se dedicava à contabilidade.
A Equipe de Registro de Sepulturas da brigada começou a se espalhar pela aldeia e suas imediações para recolher os restos mortais dos combatentes iraquianos, que foram recolhidos em sacos plásticos pretos, acompanhados de quaisquer objetos pessoais que possam ajudar a identificá-los.
"Basicamente, fizemos pelos mortos iraquianos a mesma coisa que teríamos feito por mortos norte-americanos", disse o capitão Andrew J. Valles, o oficial de assuntos civis da brigada.

"Perto, mas não no meio"
Para Redmond, 26, era hora de digerir o que havia acontecido. Ele não queria se concentrar nos detalhes das mortes causadas por suas armas. "Outros sujeitos podem lhe contar os detalhes, talvez até embelezá-los para criar uma história melhor", disse.
Redmond se alistou no Exército três anos atrás, depois de algum tempo vivendo de bicos em sua cidade de origem, uma pequena comunidade com quatro igrejas e sem semáforos perto de Gainesville, Flórida.
Ele queria ser um soldado de combate, mas sua mulher disse ao encarregado do recrutamento do Exército que preferia que ele tivesse um trabalho -ou Especialidade de Ocupação Militar, MOS, no jargão do Exército- mais seguro. O oficial de recrutamento sugeriu que ele se tornasse um observador avançado, o encarregado de solicitar e coordenar fogo de artilharia e ataques aéreos.
"Ele disse que eu estaria perto o bastante da frente para ver os combates, mas não estaria no meio deles", disse. "Mas olhe para mim agora."
Redmond estava na ponte, quando os iraquianos detonaram explosivos por sob seu veículo. A ponte se abalou, mas não chegou a cair, e ele sentiu o súbito e doloroso medo de ficar isolado.
Em retrospecto, questiona a decisão de enviar apenas uma tropa de patrulha, sem blindados, para o outro lado da ponte.
Como muitos dos soldados aqui presentes -do mais simples praça ao comandante do 5º Corpo de Exército, tenente-general William S. Wallace-, Redmond afirma que não esperava que os iraquianos resistissem às forças da coalizão com tamanha persistência. "Eu esperava que muito mais gente se rendesse", disse. "Pelas informações que recebi, achei que todos capitulariam."
Nos três dias que se seguiram, isso não aconteceu, e ele disparou todas as armas de que dispunha, incluindo uma metralhadora, seu fuzil M-4 e um lançador de granada -tudo menos o míssil antitanque que havia em seu veículo. Muitos dos iraquianos, segundo o sargento Redmond, atacaram sem hesitar diante do fogo intenso dos tanques.
"Não chamaria isso de coragem. Chamaria de estupidez", afirmou. "Nós damos muito mais valor do que eles à vida de um soldado. Quero dizer, um AK-47 nada pode contra um Bradley. Adoraria saber o que Saddam está dizendo ao seu povo."
"Quando voltar para casa, as pessoas vão querer me tratar como herói, mas isso eu não sou", prosseguiu Redmond. "Sou cristão. Se tenho de matar outro homem, cumpro meu dever, mas isso não me torna herói. Só quero voltar para casa, para minha mulher e meus filhos."

"Resposta do amor"
O capelão-chefe da brigada, major Mark B. Nordstrom, disse ter passado mais de seis horas com os soldados da tropa na quinta-feira, depois que eles voltaram de Kifl. Redmond era um dos presentes.
Nordstrom é membro de um dos ramos dos menonitas, que pregam uma teologia pacifista. Ele pensou bastante a respeito da situação. Menciona a teoria da guerra justa, de santo Agostinho: "A guerra é a resposta do amor a um vizinho ameaçado pela força." "Nos últimos dias, milhares de soldados foram mortos", disse. "Nada nos prepara para matar outro ser humano. Nada nos prepara para usar uma metralhadora e cortar alguém pela metade."
"Eles contam histórias entre si", acrescentou, quanto aos soldados. "Quando me aproximo, contam histórias diferentes. Não gostam de tirar vidas, especialmente de perto. Querem conversar comigo para saber que eu sei que não são pessoas horríveis."

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