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São Paulo, sábado, 31 de maio de 2003

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ARTIGO

Guerra real, motivos fictícios


O governo extraiu vantagem política de uma guerra travada sob falsas premissas. É um péssimo precedente


PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

Um governo exagera a ameaça que uma potência estrangeira representa. Fala de elos com o terrorismo fundamentalista islâmico. Adverte sobre um programa de armas nucleares. A imprensa toda segue a orientação do governo, e o país termina varrido por uma febre guerreira. A guerra elimina tudo mais -incluindo escândalos que envolvem funcionários do governo- da consciência do público.
"Wag the Dog" [no Brasil, "Mera Coincidência"], um filme de 1997, tinha um roteiro impressionante.
Ainda que o título do filme [expressão idiomática que significa "o rabo abana o cachorro", ou seja, uma inversão de expectativas] tenha se tornado parte da gíria nos Estados Unidos, não conheço muita gente que o tenha assistido recentemente. Leiam o roteiro. Se vocês não acreditam que o filme tenha certas semelhanças com os acontecimentos recentes, estão negando o óbvio.
A guerra do Iraque foi muito real, mesmo que seus "momentos Kodak" -a derrubada da estátua de Saddam Hussein, o resgate da soldado Jessica Lynch- pareçam ter sido melhorados na mesa de edição. Mas boa parte das supostas justificativas para a guerra provou ser ficção.
A guerra foi justificada diante do público com a alegação de que havia ligações entre Saddam e a Al Qaeda e com a alegação de que o Iraque tinha um arsenal de armas de destruição em massa. Não surgiu nenhum indício de ligação com a Al Qaeda, e nenhuma arma de destruição em massa que pudesse representar ameaça para os Estados Unidos ou seus aliados foi encontrada.
O fracasso em localizar as armas de destruição em massa foi descrito como um "erro da inteligência", mas essa explicação ignora o fato de que as agências de inteligência sofreram intensa pressão para dizer aos governos Bush e Blair exatamente aquilo que eles desejavam ouvir. Mesmo antes que a guerra começasse, descobrimos mancadas como a apresentação de um relatório plagiado e velho de uma década sobre as capacidades iraquianas como se fosse informação nova, além do uso de documentos falsificados de maneira grosseira como prova de um programa nuclear.
No final do ano passado, o ex-diretor do programa de combate ao terrorismo da CIA (agência de inteligência americana) advertiu que "informações adulteradas" estavam sendo divulgadas em pronunciamentos oficiais. Nesta semana, um importante funcionário dos serviços britânicos de inteligência declarou à rede de rádio e televisão BBC que, sob pressão do gabinete do primeiro-ministro, um dossiê sobre os arsenais iraquianos havia sido "transformado" para torná-lo mais "sexy" -materiais não corroborados e vindos de fonte suspeita foram adicionados ao texto para fazer com que a ameaça parecesse iminente.
Ficou claro agora, igualmente, que George W. Bush não tinha intenção de conseguir uma solução diplomática. De acordo com o "Financial Times", fontes da Casa Branca confirmam que a decisão de ir à guerra, em 20 de março, fora tomada em dezembro: "Um ditador de meia-tigela estava zombando do presidente. Isso causou uma sensação de ira na Casa Branca", disse uma fonte ao jornal.
Os funcionários do governo norte-americano agora tentam reduzir a importância das armas de destruição em massa no episódio. Paul Wolfowitz, subsecretário da Defesa, declarou recentemente à revista "Vanity Fair" que a decisão de enfatizar as armas de destruição em massa fora tomada por "motivos burocráticos... porque era uma razão sobre a qual todos podiam concordar". Mas foi a questão das armas de destruição em massa que levou o Senado a acelerar a concessão de carta-branca a Bush para a condução de uma guerra.
Por enquanto, o público não parece se incomodar ou sequer desejar saber. Uma nova pesquisa do Program on International Policy Attitudes concluiu que 41% dos norte-americanos ou acreditam que as armas de destruição em massa tenham sido encontradas ou não estão certos quanto ao assunto. O diretor do programa sugere que "alguns americanos podem estar evitando passar por uma experiência de dissonância cognitiva". E três quartos do público acreditam que o presidente George W. Bush exibiu forte liderança no que tange ao Iraque.
Assim, qual é o problema? Guerras combatidas para lidar com ameaças imaginárias têm consequências reais. Exatamente como temiam os críticos do governo, a Al Qaeda saiu mais forte da guerra. O Iraque vive o caos, com aumento no número de mortes entre os soldados norte-americanos. "Temos relatos de escaramuças em toda a região central do país", disse um funcionário do Pentágono ao "Los Angeles Times".
Enquanto isso, o governo extraiu considerável vantagem política de uma guerra travada sob falsas premissas. Na melhor das hipóteses, isso estabelece um péssimo precedente. Na pior... "Você quer ganhar essa eleição? Trate de mudar de assunto. Se quer mudar de assunto, trate de arranjar uma guerra", explica o articulador político interpretado por Robert de Niro em "Mera Coincidência". "O show business é assim."
Uma última nota: o canal Showtime está filmando um documentário sobre o 11 de setembro. O produtor é alguém com livre trânsito na Casa Branca e trabalha em contato próximo com o chefe da Casa Civil, Karl Rove. O roteiro mostra Bush como presidente decidido e eloquente. "No filme", diz o "Globe and Mail", "Bush faz discursos longos e inspiradores que imediatamente são adotados como decisões políticas". E podemos estar certos de que o roteiro não menciona a história falsa sobre uma suposta ameaça ao avião presidencial divulgada para justificar os movimentos de Bush no dia dos atentados. Afinal, isso é o show business.


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