São Paulo, terça-feira, 31 de agosto de 2010

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ANÁLISE

A maior diferença talvez seja o poder de esculhambação

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A invasão do Iraque começou com uma mentira, em março de 2003. E o que os EUA chamam de fim das "missões de combate" termina hoje, com outra mentira.
A mentira original: a ditadura Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, argumento que se provou absolutamente falso.
Sete anos depois da invasão, a nova mentira é a de que o Iraque pode caminhar com suas próprias pernas, o que, portanto, autoriza a retirada das tropas de combate.
Falso também. Para onde quer que se olhe, o Iraque de 2010 é uma ruína. Aos dados:
Energia elétrica: está disponível só quatro horas por dia, menos ainda no interior.
Educação: Mais de 300 mil jovens iraquianos jamais puseram os pés em uma escola.
Segurança: Só em julho, os mortos violentamente foram 222, segundo os americanos, ou 535, para os iraquianos. Na ocupação, morreram mais de 100 mil civis. Há mais de 1 milhão de viúvas e 3 milhões de órfãos, mais 1,5 milhão de iraquianos que tiveram que deixar suas casas.
Alimentação: 1 milhão de iraquianos estão no limite da fome, segundo o Programa de Alimentos das Nações Unidas, apesar de 90% da população receber algum alimento todo mês.
Saneamento: Fora de Bagdá, menos de 70% da população tem água potável.
São dados realmente terríveis, mas não é simples dizer se o Iraque está hoje, entre uma mentira e outra, melhor do que estava antes delas.
Para começar, o Iraque que foi invadido vinha de duas guerras (contra o Irã, entre 80 e 88, e contra uma coligação, após invadir o Kuait, em 91) e de 12 anos de sanções impostas pela ONU.
Já era uma ruína. Antiga, a julgar por um de seus déspotas, Faisal 2º, entronizado pelos britânicos e que governou 37 anos, até 1958: "O Iraque não é uma nação, mas uma massa ingovernável de povo contrário a qualquer ideia patriótica, mergulhada em absurdos religiosos, preparada para se rebelar contra qualquer governo".
Parece uma descrição preconceituosa de um monarca educado no Reino Unido, mas o cenário político-institucional que os EUA legam aos iraquianos parece dar razão a Faisal 2º: quase seis meses depois da eleição parlamentar de março, ainda não foi possível formar um governo por divergências que, em parte, têm um fundo religioso (entre a maioria xiita e a minoria sunita, para não mencionar o aspecto étnico, ou seja, o papel dos curdos).
De todo modo, pode-se olhar o copo iraquiano, nesse aspecto institucional, também como meio cheio: a eleição foi a terceira consecutiva a receber da comunidade internacional o selo de "justa e livre", novidade no mundo árabe, se se excluir a eleição palestina de 94 (e a Palestina ainda não é Estado).
Talvez a melhor comparação entre o Iraque de Saddam e o Iraque-2010 tenha sido feita por Abu Ghasan, dono de um loja de doces, ao "El País": "A única mudança para melhor é que hoje a gente pode esculhambar o primeiro-ministro".
Fica implícito que a ação dos EUA no Iraque só será definitivamente julgada quando -e se- a democracia permitir erguer um país sobre as ruínas de antes e de agora, em vez de só discursar contra o governante de turno.


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