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ANÁLISE
A maior diferença talvez seja o poder de esculhambação
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A invasão do Iraque começou com uma mentira, em
março de 2003. E o que os
EUA chamam de fim das
"missões de combate" termina hoje, com outra mentira.
A mentira original: a ditadura Saddam Hussein possuía armas de destruição em
massa, argumento que se
provou absolutamente falso.
Sete anos depois da invasão, a nova mentira é a de
que o Iraque pode caminhar
com suas próprias pernas, o
que, portanto, autoriza a retirada das tropas de combate.
Falso também. Para onde
quer que se olhe, o Iraque de
2010 é uma ruína. Aos dados:
Energia elétrica: está disponível só quatro horas por
dia, menos ainda no interior.
Educação: Mais de 300 mil
jovens iraquianos jamais puseram os pés em uma escola.
Segurança: Só em julho,
os mortos violentamente foram 222, segundo os americanos, ou 535, para os iraquianos. Na ocupação, morreram
mais de 100 mil civis. Há
mais de 1 milhão de viúvas e
3 milhões de órfãos, mais 1,5
milhão de iraquianos que tiveram que deixar suas casas.
Alimentação: 1 milhão de
iraquianos estão no limite da
fome, segundo o Programa
de Alimentos das Nações
Unidas, apesar de 90% da
população receber algum alimento todo mês.
Saneamento: Fora de Bagdá, menos de 70% da população tem água potável.
São dados realmente terríveis, mas não é simples dizer
se o Iraque está hoje, entre
uma mentira e outra, melhor
do que estava antes delas.
Para começar, o Iraque
que foi invadido vinha de
duas guerras (contra o Irã,
entre 80 e 88, e contra uma
coligação, após invadir o
Kuait, em 91) e de 12 anos de
sanções impostas pela ONU.
Já era uma ruína. Antiga, a
julgar por um de seus déspotas, Faisal 2º, entronizado pelos britânicos e que governou
37 anos, até 1958: "O Iraque
não é uma nação, mas uma
massa ingovernável de povo
contrário a qualquer ideia
patriótica, mergulhada em
absurdos religiosos, preparada para se rebelar contra
qualquer governo".
Parece uma descrição preconceituosa de um monarca
educado no Reino Unido,
mas o cenário político-institucional que os EUA legam
aos iraquianos parece dar razão a Faisal 2º: quase seis meses depois da eleição parlamentar de março, ainda não
foi possível formar um governo por divergências que, em
parte, têm um fundo religioso (entre a maioria xiita e a
minoria sunita, para não
mencionar o aspecto étnico,
ou seja, o papel dos curdos).
De todo modo, pode-se
olhar o copo iraquiano, nesse
aspecto institucional, também como meio cheio: a eleição foi a terceira consecutiva
a receber da comunidade internacional o selo de "justa e
livre", novidade no mundo
árabe, se se excluir a eleição
palestina de 94 (e a Palestina
ainda não é Estado).
Talvez a melhor comparação entre o Iraque de Saddam e o Iraque-2010 tenha sido feita por Abu Ghasan, dono de um loja de doces, ao
"El País": "A única mudança
para melhor é que hoje a gente pode esculhambar o primeiro-ministro".
Fica implícito que a ação
dos EUA no Iraque só será definitivamente julgada quando -e se- a democracia permitir erguer um país sobre as
ruínas de antes e de agora,
em vez de só discursar contra
o governante de turno.
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