São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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OLHAR BRASILEIRO

As guerras culturais no seio do Império

WALTER SALLES

Rádio pública norte-americana, três meses atrás. Discursos militaristas se sucedem, cada um mais inflamado do que o outro. A convenção republicana começou mais cedo, pensou um amigo que participou dos movimentos de contra-cultura nos anos 60. Não era. Um partido democrata em crise de identidade oficializava ali a candidatura de Kerry.
Seu primeiro discurso deixou meu amigo de cabelos em pé: "Vou caçar os terroristas e depois matá-los". Não parou por aí. Vestido com roupa de camuflagem, Kerry brindou recentemente os eleitores indecisos com tiros certeiros em gansos selvagens. Depois, usou a sexualidade da filha de Cheney para assustar os eleitores mais conservadores. "Que desânimo", comentou meu amigo, que vota no Partido Democrata desde os anos 70.
Discursos ou expedientes como esses não foram utilizados por candidatos democratas à Presidência nos últimos 30 anos. Por que ocorreu tamanha mudança?
Em grande parte porque, em 2004, as pesquisas de opinião passaram a determinar aquilo que um político como Kerry diz. É semelhante ao que acontece no cinema hollywoodiano, em que o ritmo, os pontos de inflexão e o final de um filme são hoje ditados pelo mesmo processo.
Problema: o que grande parte dos eleitores norte-americanos quer ouvir hoje em relação à política externa e à segurança interna se aproxima daquilo que os republicanos estão dizendo. Aumento do poderio militar, dos mecanismos internos de controle, vingança e retaliação. Donde essa desconfortável sensação de superposição entre o discurso dos dois partidos nessas áreas.
Outro pepino, não menos grave: alguns intelectuais tradicionalmente ligados à esquerda americana passaram a defender abertamente a invasão do Iraque, influenciando esse vaivém na posição do Partido Democrata e do próprio Kerry em relação à guerra. Uma indecisão da qual Bush se aproveitou constantemente nos debates.
Esse grupo, chamado de "Liberal Hawks" (falcões liberais) por revistas progressistas como a "The Nation", defendeu a invasão do Iraque independentemente da existência de armas de destruição em massa. A tese, enunciada por gente como Michael Mc Faul e em livros como "Terror e Liberalismo", de Paul Berman, tenta vender a idéia de que essa guerra é uma extensão do combate contra o comunismo ou o fascismo. Nacionalistas árabes e radicais islâmicos são colocados no mesmo saco -a mesma coisa que faz Bush. "Enquanto esse messianismo liberal continuar a influenciar o pensamento do Partido Democrata, será difícil viabilizar uma alternativa para a política externa republicana", conclui a "The Nation".
Essa guerra no âmbito cultural tem sido pouco estudada, mas é determinante para entender o que os EUA são hoje. Não começou agora, e sim nos anos 70. Naquela época, Lewis Powell, membro conservador da Suprema Corte, defendeu a tese de que a Guerra do Vietnã foi perdida não só no campo de batalha, mas também no campo das idéias. A partir daí, a direita norte-americana despejou bilhões de dólares em "think tanks" e se reorganizou -com grande sucesso.
"Nessa guerra cultural, a direita conseguiu convencer muita gente de que a esquerda -de professores progressistas a ativistas feministas, passando por ecologistas e preservacionistas- estava conduzindo a América para o abismo", diz o professor e filósofo Cornel West no recém-publicado "Democracy Matters".
"Depois do 11 de Setembro, o problema se ampliou. Um patriotismo estreito e a guerra-revanche contra o terrorismo reviveram o Império, ao custo de uma escalada autoritária dentro dos EUA que está corroendo a democracia americana", afirma.
Ao fundamentalismo islâmico se opõe hoje um outro tipo de fundamentalismo, idealizado por líderes conservadores, elites econômicas, intelectuais revisionistas e porta-vozes das igrejas eletrônicas nos EUA. O poderio militar e ideológico desse estamento nunca foi tão forte. Ao mesmo tempo, ajuda a mascarar problemas internos de uma gravidade aflitiva, como o desemprego e o déficit interno.
Para onde irão os EUA nesta terça? Na direção em que foram outros impérios que pareciam imbatíveis no passado, como o Romano ou o Otomano? Ou serão os EUA salvos, como nas crises da Depressão e do Vietnã, por sua capacidade de reinvenção?
Apesar das diferenças que existem entre os dois candidatos, serão elas suficientes? "Aconteça o que acontecer, a grande batalha que temos pela frente será o desmantelamento do Império e o aprofundamento da democracia interna", conclui Cornel West. Não será fácil, no mundo binário da política norte-americana. Bush não o fará. E Kerry? Meu amigo espera que sim, mas anda mais cético do que nunca.


Walter Salles, cineasta, está nos EUA para o lançamento de "Diários de Motocicleta" e para a montagem do seu próximo filme.

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