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OLHAR BRASILEIRO
As guerras culturais no seio do Império
WALTER SALLES
Rádio pública norte-americana,
três meses atrás. Discursos militaristas se sucedem, cada um mais
inflamado do que o outro. A convenção republicana começou
mais cedo, pensou um amigo que
participou dos movimentos de
contra-cultura nos anos 60. Não
era. Um partido democrata em
crise de identidade oficializava ali
a candidatura de Kerry.
Seu primeiro discurso deixou
meu amigo de cabelos em pé:
"Vou caçar os terroristas e depois
matá-los". Não parou por aí. Vestido com roupa de camuflagem,
Kerry brindou recentemente os
eleitores indecisos com tiros certeiros em gansos selvagens. Depois, usou a sexualidade da filha
de Cheney para assustar os eleitores mais conservadores. "Que desânimo", comentou meu amigo,
que vota no Partido Democrata
desde os anos 70.
Discursos ou expedientes como
esses não foram utilizados por
candidatos democratas à Presidência nos últimos 30 anos. Por
que ocorreu tamanha mudança?
Em grande parte porque, em
2004, as pesquisas de opinião passaram a determinar aquilo que
um político como Kerry diz. É semelhante ao que acontece no cinema hollywoodiano, em que o
ritmo, os pontos de inflexão e o final de um filme são hoje ditados
pelo mesmo processo.
Problema: o que grande parte
dos eleitores norte-americanos
quer ouvir hoje em relação à política externa e à segurança interna
se aproxima daquilo que os republicanos estão dizendo. Aumento
do poderio militar, dos mecanismos internos de controle, vingança e retaliação. Donde essa desconfortável sensação de superposição entre o discurso dos dois
partidos nessas áreas.
Outro pepino, não menos grave:
alguns intelectuais tradicionalmente ligados à esquerda americana passaram a defender abertamente a invasão do Iraque, influenciando esse vaivém na posição do Partido Democrata e do
próprio Kerry em relação à guerra. Uma indecisão da qual Bush se
aproveitou constantemente nos
debates.
Esse grupo, chamado de "Liberal Hawks" (falcões liberais) por
revistas progressistas como a
"The Nation", defendeu a invasão
do Iraque independentemente da
existência de
armas de destruição em
massa. A tese,
enunciada
por gente como Michael
Mc Faul e em
livros como
"Terror e Liberalismo",
de Paul Berman, tenta
vender a idéia
de que essa
guerra é uma
extensão do
combate contra o comunismo ou o fascismo. Nacionalistas árabes e radicais islâmicos são
colocados no mesmo saco -a
mesma coisa que faz Bush. "Enquanto esse messianismo liberal
continuar a influenciar o pensamento do Partido Democrata, será difícil
viabilizar uma
alternativa para a política externa republicana", conclui
a "The Nation".
Essa guerra
no âmbito cultural tem sido
pouco estudada, mas é determinante para entender o
que os EUA
são hoje. Não
começou agora, e sim nos
anos 70. Naquela época,
Lewis Powell,
membro conservador da Suprema Corte, defendeu a tese de que a Guerra do
Vietnã foi perdida não só no campo de batalha, mas também no
campo das idéias. A partir daí, a
direita norte-americana despejou
bilhões de dólares em "think
tanks" e se reorganizou -com
grande sucesso.
"Nessa guerra cultural, a direita
conseguiu convencer muita gente
de que a esquerda -de professores progressistas a ativistas feministas, passando por ecologistas e
preservacionistas- estava conduzindo a América para o abismo", diz o professor e filósofo
Cornel West no recém-publicado
"Democracy Matters".
"Depois do 11 de Setembro, o
problema se ampliou. Um patriotismo estreito e a guerra-revanche
contra o terrorismo reviveram o
Império, ao custo de uma escalada autoritária dentro dos EUA
que está corroendo a democracia
americana", afirma.
Ao fundamentalismo islâmico
se opõe hoje um outro tipo de
fundamentalismo, idealizado por
líderes conservadores, elites econômicas, intelectuais revisionistas e porta-vozes das igrejas eletrônicas nos EUA. O poderio militar e ideológico desse estamento
nunca foi tão forte. Ao mesmo
tempo, ajuda a mascarar problemas internos de uma gravidade
aflitiva, como o desemprego e o
déficit interno.
Para onde irão os EUA nesta
terça? Na direção em que foram
outros impérios que pareciam
imbatíveis no passado, como o
Romano ou o Otomano? Ou serão
os EUA salvos, como nas crises da
Depressão e do Vietnã, por sua
capacidade de reinvenção?
Apesar das diferenças que existem entre os dois candidatos, serão elas suficientes? "Aconteça o
que acontecer, a grande batalha
que temos pela frente será o desmantelamento do Império e o
aprofundamento da democracia
interna", conclui Cornel West.
Não será fácil, no mundo binário
da política norte-americana. Bush
não o fará. E Kerry? Meu amigo
espera que sim, mas anda mais
cético do que nunca.
Walter Salles, cineasta, está nos EUA
para o lançamento de "Diários de Motocicleta" e para a montagem do seu próximo filme.
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