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Ensaio

ARTE & ESTILO

O adeus de um pioneiro da dança

ALASTAIR MACAULAY

Em 1999, pouco antes de seu 80° aniversário, o coreógrafo Merce Cunningham ouviu de seu irmão a seguinte pergunta: "Quando é que você vai criar algo de que o público goste?".

Um mês mais tarde, no Zellerbach Hall, em Berkeley, Califórnia, Cunningham e seus dançarinos foram tremendamente ovacionados na première mundial de "Biped". Esta seria a obra mais sensacional, abundante e internacionalmente aclamada da velhice do coreógrafo -uma cornucópia que sugeria imagens constantes de morte e transcendência, com uma coreografia criada parcialmente no computador. Nos dez anos remanescentes de sua vida, Cunningham foi saudado como o maior coreógrafo vivo no mundo.

Mas sua companhia pioneira, fundada em 1953, continuou a apresentar um desafio após outro ao público, mesmo após a morte de Cunningham em 2009. Ela fez sua derradeira apresentação na véspera do Ano Novo. É possível que as obras de Cunningham sejam reapresentadas por outras companhias, mas, sem dançarinos treinados especificamente para elas, é provável que muita coisa se perca.

Problemáticas para apreciar, difíceis de executar, as coreografias de Cunningham não ficaram mais palatáveis com o passar do tempo, apesar de sua técnica ter passado a ser ensinada em todo o mundo. Durante uma apresentação em 2005 de seu trabalho "Ocean" (1994), em Londres, uma coreografia dançada em círculo, algumas pessoas chegaram a subir sobre o palco em sua ânsia por encontrar a porta de saída. No ano passado, nas apresentações do trabalho de Cunningham, "Nearly Ninety2" (2009), alguns integrantes do público se deixaram converter, mas outros fugiram.

O que seus dançarinos faziam era virtuosístico e estranho. A técnica dizia respeito a coordenação e ritmos complexos e ao equilíbrio em situação marcadas pela ausência de equilíbrio.

Os dançarinos de Cunningham chegaram a ser comparados a robôs. Às vezes era visível que trabalhavam com concentração intensa ("é quando a dança se torna desajeitada que ela começa a ficar interessante", Cunningham gostava de afirmar). Eles empregavam extremos de velocidade e lentidão; frequentemente ficavam imóveis (em muitos casos, apoiados sobre uma perna apenas). Arqueavam as costas para trás em um grau incomum.

Entre as primeiras dez pessoas a terem reagido com paixão ao trabalho de Cunningham estiveram os artistas Robert Rauschenberg e Jasper Johns, ambos os quais criaram para a companhia. "Nada que Merce faz é simples", disse Jasper Johns em 1968. "Tudo possui uma complexidade fascinante e uma multiplicidade de direções."

Oi primeiro e crucial desafio enfrentado pela companhia de dança de Merce Cunningham foi o modo como dança, música e design eram apresentados como forças iguais e independentes, que entravam em choque.

Mas a maior dificuldade de Cunningham -durante 50 anos parceiro do compositor John Cage- nasceu da natureza da música que ele escolhia.

Algumas partituras usadas pelo coreógrafo eram ensurdecedoras. Em alguns de seus trabalhos, dança e música compartilhavam o mesmo caráter pacífico, mas, em outras, o xis da questão estava justamente na desconexão entre a música e a dança. Quando um dançarino conservava um equilíbrio calmo em meio a uma paisagem sonora com sons de foguetes a jato ou tilintar de radiadores, o efeito podia ser o de graça e beleza conservados sob pressão. Ou os dançarinos fazendo quedas lentas contra um pano de fundo de quase silêncio destacava o drama do movimento puro, isolado.

Em "Shards" (1987), uma obra soturna mas surpreendente, me recordo de ter visto dançarinos congelados por longos períodos, reclinados em ângulos extraordinários a partir da cintura e então sofrendo acessos curtos de movimentos espasmódicos. Um trabalho sombrio; por que, então, nos assombra tanto? Cunningham disse na época: "A sociedade está dividida em tantas direções. Vejo a desintegração. Tantas coisas estão se fragmentando, tantas pessoas estão tendo problemas de vários tipos. Não existe um centro. Acho que o centro está em nós mesmos. Cada pessoa tem que encontrá-lo sozinha. Acho que 'Shards' nasceu desse pensamento."

Mas "Shards" descia mais fundo que as condições sociais: a própria natureza parecia estar afligida por um colapso nervoso. Era um drama poético de uma ordem profunda. A obra mudou minha paisagem mental.

Nenhum coreógrafo jamais foi mais dedicado às novas possibilidades. Agora essa empreitada incomparavelmente imaginativa chega ao fim. Essa decisão foi tomada pelo próprio Merce Cunningham. Sua carreira foi dedicada ao novo; ele não queria que sua companhia encolhesse, virando um museu. Tínhamos que correr para acompanhar sua arte. Ao longo desse caminho, nossas vidas foram modificadas repetidas vezes.

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