Índice geral New York Times
New York Times
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Tendências Mundiais

Esperança regressa à arruinada capital da Somália

POR JEFFREY GETTLEMAN

MOGADÍCIO, Somália - Até algumas semanas atrás, todos os visitantes que desembarcavam no Aeroporto Internacional Aden Abdulle, em Mogadício, recebiam uma folha pouco legível perguntando nome, endereço e o calibre da arma.

Não mais. Agora, os visitantes recebem um cartão amarelo de boas-vindas, sem menção a armas, e com várias opções entre as razões para visitar o país, incluindo uma nova categoria: férias.

Do lado de fora, nas ruas de Mogadício, a batida que se ouve de manhã não é mais de metralhadoras, mas de martelos. Há obras por todo lado -novos hospitais, novas casas, novas lojas, um hotel de seis andares e até um bar de esportes (só que servindo cappuccino e suco, em vez de cerveja). Os artistas voltaram a pintar e os cantores somalis realizaram seu primeiro show em mais de duas décadas no Teatro Nacional, que já foi um armazém de armas.

Depois de 21 anos de guerra civil, tempo em que foi reduzida a escombros e virou sinônimo de anarquia, a capital da Somália vive uma admirável recuperação. O temível grupo insurgente Al Shabab, que chegou a controlar grande parte do país, retirou-se da cidade em agosto e está cercado em múltiplas frentes por tropas da União Africana, do Quênia, da Etiópia e de milícias locais.

Recentemente ficou claro que esta cidade e o resto da Somália ainda têm um longo caminho a percorrer. No último dia 4, homens-bombas atacaram o Teatro Nacional e os portões do palácio presidencial e um morteiro perdido atingiu um campo de refugiados, matando ao menos seis pessoas. Entre os mortos estavam o presidente do Comitê Olímpico somali, Aden Yabarow Wiish, e o presidente da Federação de Futebol da Somália, Said Mohamed Nur.

Alguns senhores da guerra ainda estão à espreita e milícias ligadas a clãs surgiram em alguns bairros. Mas as pessoas aqui estão vivendo um novo momento e o aproveitando.

Mais de 300 mil moradores voltaram à cidade nos últimos seis meses, segundo ONGs locais, e muitos estão animadamente retirando o entulho e reconstruindo suas casas crivadas de balas. O boom econômico, alimentado pela injeção de dezenas de milhões de dólares -em grande parte de somalis regressando do exterior- gera milhares de empregos, que começam a absorver muitos jovens que antes atuavam como milicianos.

Há agora uma superpotência na capital -a União Africana, com 10 mil soldados (em breve, serão 17 mil), tanques, artilharia e blindados- e a cidade acumulou oito meses de paz até o início de abril, um recorde desde 1991.

"É um renascimento", sorriu Omar Osman, engenheiro de software recém-regressado dos Estados Unidos, onde trabalhou na Delta Airlines, em Atlanta. "Chamem de Somália 2.0."

Os empreendedores

Em toda a cidade, pessoas sem nenhuma ligação e com origens distintas descrevem a mesma sensação nova e estranha: esperança.

Ela pode ser percebida no mercado de peixes de Mogadício. O regresso de moradores à cidade e a abertura de novos hotéis e restaurantes causou uma alta nos preços, de cerca de US$ 0,50 por quilo há poucos anos, quando Mogadício era uma traumatizada cidade fantasma, para os US$ 2 atuais.

"Quatro milhões!", grita o peixeiro Mohammed Sheik Nur Taatey, 38, agitando quatro dedos grossos. "Dê-me quatro milhões. Não aceito um xelim a menos."

Ele comanda o leilão da pesca do dia para os atacadistas. Suas finanças pessoais melhoraram muito nos últimos meses.

"Ah, olha, peixe-tubarão!", gritou Taatey num inglês capenga e exuberante, enquanto pescadores arrastavam pelo chão um tubarão de 180 kg, rapidamente vendido por US$ 600.

Minutos depois, com tijolos de xelins somalis nos braços e suor escorrendo pelas têmporas, ele disse: "Esta é a melhor época da minha vida". Naquele dia, ele ganhou US$ 27.

O renascimento está trazendo de volta gente como Liban Egal. Enquanto sua cidade natal estava caótica, Egal, fiel ao lendário espírito empreendedor somali, dirigia um pequeno império de agências que descontam cheques e de restaurantes de frango frito em Baltimore, Maryland.

Agora, ele está inaugurando um dos primeiros bancos comerciais propriamente ditos no país. Ele diz que esta é a hora certa -nem cedo nem tarde demais- para investir na Somália, porque a segurança melhorou drasticamente e os impostos ainda estão baixos.

"Eu me apressei a chegar", disse Egal, 42, mexendo em uma antena parabólica de US$ 115 mil, pela qual pagou US$ 900.

O artista

O xelim somali está se valorizando -o dólar, que valia 33 mil xelins há seis meses, caiu agora para 20 mil. E os preços dos imóveis estão disparando porque todas as organizações internacionais estão voltando a Mogadício, após um hiato de 20 anos.

O renascimento -embora imperfeito- é evidente também nas artes. O franzino artista Abdullah Abdirahman Abdullah Alif ainda recebe ameaças de morte pelas caricaturas que desenha. "Mas pelo menos tenho um emprego", diz ele. "Da forma como vejo, estamos em uma transição."

Uma tela de três metros ilustra seu argumento. No meio dela, um adolescente -metade carne, metade esqueleto- segura uma pomba numa mão e um rifle na outra. Atrás dele estão dois futuros muito diferentes: campos verdejantes, melões suculentos e prédios bonitos, versus chamas, tumbas e urubus.

"Fizemos isso de forma realmente simples", disse Alif, 40. "Um menino é a espinha dorsal da sociedade e queremos que os meninos olhem para isso e entendam que eles têm uma opção agora, morte e destruição ou paz."

Alif é parte de um grupo de artistas que acaba de emergir de anos de esconderijo e que recebeu encomendas de uma ONG local para fazer pinturas gigantes promovendo a paz, com um respeitável salário de US$ 400 por mês.

Ele parece animado com o ressurgimento artístico em curso. Um grupo de músicos se reuniu numa tarde para uma "jam session", balançando as cabeças, com o som tocando alto. As mulheres fumavam cigarros e mascavam qat (erva com propriedades estimulantes). Na época do Al Shabab, elas poderiam ser mortas por fazerem isso.

"Passo a passo, passo a passo", sorriu Alif.

A policial

Tamanho progresso em Mogadício depende de uma coisa básica, mas fugidia: segurança. É aí que entram policiais como Khadija Hajji Diriye.

Diriye, 35, entra faceira na delegacia de Waberi, e um colega lhe entrega uma AK-47. "Antes", disse ela, com um brilho nos olhos, "o Al Shabab estava logo do outro lado da rua e eu ficava atirando".

A delegacia estava movimentada. Escrivães preparavam boletins de ocorrência em uma velha máquina de escrever e ocasionalmente investigavam casos e faziam prisões.

O somali-americano Abdi Ismail Samatar, professor de geografia, disse que, com o início da guinada de Mogadício, "tudo depende de instituições" como a polícia. "O setor privado só pode ir até certo ponto", disse ele. "Agora cabe ao pessoal no alto do morro."

Mas o pessoal do morro -ou seja, do palácio presidencial, no topo de uma colina- ainda parece tão disfuncional como sempre. Dois homens se intitulam presidentes do Parlamento, paralisando todo o processo legislativo.

Não é surpresa, portanto, que os mais importantes funcionários públicos não costumem receber salário. Diriye deveria ganhar US$ 100 por mês, mas raramente vê o dinheiro.

Ela disse que continua no emprego por patriotismo.

"Em 1991, quando o governo desmoronou, foi a pior época da minha vida", contou. "Então como posso ir embora agora? Podemos farejar um governo chegando."

O assasino

Coexistindo com Diriye há Abdul Kader, que costumava caçar policiais, funcionários públicos, intelectuais e um ou outro xeque religioso. Ele fazia parte da Amneeyat, a polícia secreta do Al Shabab, basicamente um esquadrão de pistoleiros.

Abdul Kader, que pediu sigilo de seu sobrenome, disse que se envolveu em mais de 50 assassinatos. "Ouvi muita gente implorando por suas vidas", afirmou.

Ele entrou para a sua primeira milícia há seis anos, aos 20. Com a economia somali em ruínas, as milícias e gangues de piratas eram praticamente os únicos empregadores.

Ele disse que se tornou insensível ao ato de matar, mas viu que o Al Shabab estava perdendo terreno para "as forças externas".

Meses atrás, ele desertou e ainda olha sobre os ombros procurando sinais de algum ex-colega. Como muitos ex-milicianos, ele parece um pouco perdido. "Só quero um emprego normal", disse. Como o quê? Ele pensou por alguns segundos e respondeu: "Eu ficaria feliz como motorista".

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.