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Na tragédia, sobrevive o fantástico

Por RACHEL ARONS

MONTEGUT, Louisiana - O cineasta Benh Zeitlin possui uma maneira intuitiva de deixar que pessoas e lugares reais penetrem nas histórias míticas de sua imaginação. Seu curta-metragem "Glory at Sea" (2008) conta a história de pessoas que constroem um barco feito de destroços colhidos após uma tempestade e vão resgatar seus entes queridos presos debaixo d'água.

Zeitlin, 29, tinha planejado filmar fora dos Estados Unidos. Mas, ao visitar Nova Orleans em 2006, sentiu que a história que tinha na cabeça guardava uma relação com o período pós-furacão Katrina, que devastou a cidade em 2005.

A premissa era que os moradores de uma comunidade se uniriam "num movimento louco e insensato de esperança", contou ele. "E eu senti isso começar a acontecer quando vim para cá."

Seu primeiro longa metragem é "Beasts of the Southern Wild", em cartaz no momento nos Estados Unidos, destaque do festival de cinema de Munique em 30 de junho e que chegará aos cinemas da Europa neste mês. O filme cria mais um universo imaginativo baseado na conexão do diretor com um local real e seus moradores. O filme recebeu prêmios em Sundance e Cannes. Manohla Dargis escreveu no "New York Times" que o filme é "assombrosamente belo, tanto visualmente quanto na ternura que revela em relação aos personagens", e A.O. Scott, também no jornal, o descreveu como "uma explosão de alegria pura e improvável".

Rodado no remoto sul do Louisiana, com orçamento limitado e atores não profissionais, "Beasts" é ambientado numa baía pantanosa mítica chamada Bathtub ("banheira", em inglês) -um local utópico e inclemente isolado da civilização por uma barragem, mas cheio de beleza natural e movido pelo espírito contestador de seus moradores. No cerne do filme está a pequena Hushpuppy (representada por Quvenzhané Wallis, que tinha apenas 6 anos na época) e sua maneira mágica de encontrar sentido em seu mundo: a ausência de sua mãe, os problemas de saúde de seu pai, Wink (Dwight Henry), e a tempestade que ameaça destruir seu mundo.

"Se você olhar o mapa, verá a América mais ou menos se desfazendo na região do Golfo, onde a terra está sendo consumida [pelo mar]", disse Zeitlin. "Fiquei fascinado por essas estradas que vão até a parte mais ao sul da América, e no que há no fim delas." O que ele encontrou foram as vilas pesqueiras da paróquia de Terrebonne. Relativamente intocada pelo Katrina, mas fortemente atingida por furacões subsequentes, Terrebonne possui uma cultura vibrante que se estende até a margem dos pântanos do delta do Mississippi, que estão desaparecendo. Em sua primeira visita à área, Zeitlin percorreu uma estrada estreita que leva à minúscula ilha de Jean Charles, que apenas 40 anos atrás era um lugar em crescimento, habitado por indígenas americanos de língua francesa. A ilha, na qual restam duas dúzias de famílias, está se desintegrando no golfo do México. A ilha de Jean Charles deu a Zeitlin os paradigmas da surreal precariedade ecológica de Bathtub e a determinação de seus moradores de permanecerem nela.

Zeitlin e Lucy Alibar adaptaram o roteiro da peça de Alibar e Zeitlin disse que seu objetivo foi captar "verdades emocionais" que a mera realidade da perda de terra ou da destruição provocada por furacões não consegue transmitir. "Qual é a sensação de perder o lugar onde se vive, um pai, uma mãe ou uma cultura? Como você reage emocionalmente para sobreviver a isso?", perguntou.

Zeitlin herdou de seus pais, folcloristas, a paixão por encontrar arte e poesia na vida cotidiana. Ele produziu o roteiro em oito meses em Terrebonne, onde foi praticamente adotado por uma família. As cenas em Bathtub canalizam a sensação de estar em um bar da baía e em um dos exuberantes festejos do sul da Louisiana, uma das maneiras mais fortes em que a região enfrenta suas tragédias. "Não coloquei no filme nada nem ninguém pelos quais eu não sinta amor e respeito", disse o diretor.

O clima de intimidade do filme deve-se muito aos atores amadores. Dwight Henry é padeiro e Quvenzhané Wallis, "uma garotinha que prende a atenção da câmera com uma facilidade carismática que faria estrelas de cinema adultas chorarem de inveja", segundo o "New York Times". Ela foi escolhida entre cerca de 3.500 crianças de Louisiana.

No primeiro dia de filmagens ocorreu a explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon no golfo do México, e os responsáveis pelo filme receberam a notícia de que a mancha de óleo poderia acabar com a pesca na região por anos. "Eu reescrevi as cenas à medida que filmávamos, baseado nos momentos de pavor que estávamos vivendo", contou Zeitlin.

Mas a história que ele conta não deixou de ser esperançosa: sobre o poder de uma pequena subcultura de resistir a forças naturais tremendas.

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