Índice geral New York Times
New York Times
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

A prosperidade brasileira nas telas

Em vez da favela, filme tem foco na classe média

Por LARRY ROHTER

Cães latindo, um bebê que chora. Empregadas e donas-de-casa conversando através do poço de ventilação de um prédio residencial. O som de um samba no rádio e futebol na televisão. O murmúrio suave do mar ao fundo, e, no primeiro plano, o barulho incessante de uma construção.

É essa a trilha sonora do cotidiano nas grandes cidades do Brasil hoje um dia, o inevitável acompanhamento de um boom econômico. Mas essa cacofonia também serviu de inspiração ao cineasta Kleber Mendonça Filho, que decidiu dar ao seu primeiro longa-metragem, já premiado em festivais da Europa e dos Estados Unidos, o título de "O Som ao Redor".

"Estamos vivendo um momento muito curioso no Brasil", disse o diretor. "Há muito dinheiro, o que significa construir coisas. Para construir, na maioria dos casos é preciso demolir outras coisas, e isso, por sua vez, estimula minha geração de diretores e artistas a dizer alguma coisa sobre isso tudo."

"O Som ao Redor", que estreou em Nova York em 24 de agosto e deve chegar aos cinemas da Holanda em setembro, é ambientado em Recife, num bairro de classe média cujos moradores, que começaram a prosperar há pouco tempo, estão comprando TVs de tela plana e carros Audi ou matriculando seus filhos em aulas de inglês e chinês. Mas eles se preocupam com a criminalidade e, quando uma firma de segurança os procura, não hesitam em utilizar seus serviços.

Mas o bairro é dominado por uma família que é dona de muitos imóveis, e o patriarca, um autocrata chamado Francisco -representado pelo romancista e ator Waldemar Solha- não quer abrir mão do controle.

Mendonça disse que as tensões de classe subjacentes a "O Som ao Redor" vêm de sua própria experiência profissional. "Lá estávamos, numa empresa moderna, com computadores e tudo, mas a mentalidade que fazia o lugar funcionar, a falta de respeito generalizada, era como a de um usineiro falando com seus cortadores de cana", explicou. "O filme nasceu precisamente dessa junção do moderno com o arcaico."

Embora "O Som ao Redor" tenha um visual colorido, vibrante, que condiz com sua ambientação tropical, o filme é literalmente, sob muitos aspectos, um "home movie". Não apenas Mendonça filmou a maioria das cenas no quarteirão em que vive, como uma das residências mostradas no filme é seu próprio apartamento.

Mendonça disse que parte do crédito por sua visão questionadora das nuances sociais deve ser dado à produtora do filme, Emilie Lesclaux, que é também sua mulher. Lesclaux, 31, foi a Recife dez anos atrás para trabalhar na seção cultural do consulado francês em Recife, apaixonou-se por Mendonça e pelo país ao mesmo tempo, mas ainda hoje fica perplexa com alguns dos costumes brasileiros.

"Conviver com ela no cotidiano é interessante, porque ela tem reações não brasileiras a alguns aspectos da vida brasileira e isso me faz perceber: 'isto é interessante'", disse o cineasta.

Um exemplo, um tema que percorre o filme todo é o relacionamento casual e aparentemente afetuoso entre os empregados, em sua maioria negros, e seus patrões, quase todos brancos.

"Quando Kleber e eu começamos a ficar juntos e eu conheci a empregada dele, que cuidava dele desde que ele era criança, fiquei pensando: 'Quem é esta mulher, qual é a relação entre eles?'", recordou Lesclaux.

Nos últimos 18 anos, o Brasil vive uma onda de crescimento que levou milhões de pessoas a ingressar na classe média. "O Som ao Redor" pode ser o primeiro grande filme brasileiro a abordar essa transformação.

Desde a época do Cinema Novo, do início dos anos 1960, os filmes brasileiros mais bem recebidos no exterior focam a pobreza, a violência e o racismo.

Mendonça disse que, embora admire profundamente os filmes do Cinema Novo, é chegada a hora de uma abordagem diferente, já que o Brasil se tornou um país de classe média.

"O cinema brasileiro precisa romper com esse modelo", disse. "Noventa e nove por cento dos cineastas brasileiros são classe média, classe média alta ou burguesia, como eu, mas, na maioria parte do tempo, fazem filmes sobre pessoas sobre as quais sabem pouco e temas que não dominam. Precisamos de mais filmes cuja ação não aconteça numa favela ou num fim de mundo e que não sejam sobre algum sujeito paupérrimo que mora debaixo da ponte."

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.