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Choque cultural inflama protesto muçulmano contra vídeo

Por DAVID D. KIRKPATRICK

CAIRO - Saindo da nuvem de gás lacrimogêneo em frente à embaixada dos EUA no Cairo, Khaled Ali repetiu a questão premente que, segundo ele, justificava os violentos protestos deste mês junto a missões diplomáticas dos EUA no mundo islâmico.

"Nunca insultamos nenhum profeta -nem Moisés, nem Jesus-, então por que não podemos exigir que Maomé seja respeitado?", disse o operário têxtil Ali, 39, segurando um cartaz que dizia: "Cale a boca, América". "Obama é o presidente, então ele deveria ter de se desculpar!"

Desde então, dezenas de países já tiveram protestos contra um vídeo feito nos EUA e divulgado pela internet que zomba de Maomé.

Mas os manifestantes daqui e seus apoiadores dizem que a raiva é motivada não só por sensibilidades religiosas, por demagogia política ou por ressentimentos contra Washington.

Muitos citam a palavra "liberdade", mas num contexto muito diferente do usado no Ocidente individualista: o direito de uma comunidade, seja ela muçulmana, cristã ou judaica, de estar livre de graves insultos à sua identidade e aos seus valores.

Essa exigência, por sua vez, foi incorporada a correntes contrárias da política regional. De um lado está a tempestade de ira contra a "guerra ao terrorismo" movida pelos EUA há mais de uma década e vista por muitos muçulmanos como uma guerra contra eles próprios.

E, de outro, sopram novos ventos na região em decorrência da Primavera Árabe, a qual para muitos aqui significa acima de tudo o direito a exigir respeito pela vontade popular.

"Queremos que esses países entendam que eles precisam levar em conta as pessoas, não só os governos", disse Ismail Mohamed, 42, acadêmico religioso que já foi imã na Alemanha.

"Não achamos que as representações dos profetas sejam liberdade de expressão. Achamos que são uma ofensa aos nossos direitos", disse ele, acrescentando que "o Ocidente precisa entender a ideologia das pessoas".

Alguns manifestantes que atiravam pedras fizeram questão de frisar que o confronto não era entre muçulmanos e cristãos, e sim do tradicionalismo de pessoas de ambos os credos contra o individualismo e o secularismo do Ocidente.

Youssef Sidhom, editor do jornal cristão copta "Watani", disse se opor apenas à violência dos protestos. Ele lembrou de forma elogiosa a reação dos cristãos egípcios contra o filme "O Código Da Vinci" (2006), que foi visto como uma afronta a aspectos tradicionais do cristianismo e à pessoa de Jesus. Egito, Jordânia, Líbano e outros países árabes proibiram o filme e o romance que o inspirou.

"Essa reação é esperada", disse Sidhom sobre os novos protestos, "e, se ela tivesse permanecido pacífica, eu diria que a apoiaria e a compreenderia".

Num contexto em que insultar religiões é crime e o Estado controla rigidamente quase todos os meios de comunicação, muitos no Egito, como em outros países árabes, às vezes acham difícil entender as regras de liberdade de expressão que impedem o governo americano de silenciar até o mais nocivo intolerante religioso.

Em declaração depois que manifestantes escalaram o muro da Embaixada dos EUA, no último 11 de setembro, o líder espiritual do principal grupo islâmico egípcio, a Irmandade Muçulmana, observou que "o Ocidente" impôs leis contra "aqueles que negam ou expressam opiniões discordantes a respeito do Holocausto, ou questionam o número de judeus mortos por Hitler, um tópico que é puramente histórico, não uma doutrina sagrada".

Na verdade, a negação do Holocausto também está protegida pela liberdade de expressão nos EUA, embora seja proibida na Alemanha e em alguns outros países europeus.

Mas a crença de que isso é ilegal nos EUA está disseminada no Egito, e o líder espiritual da Irmandade, Mohamed Badie, defendeu a "criminalização dos ataques contra santidades de todas as religiões celestiais".

"Caso contrário, tais atos continuarão levando muçulmanos devotos no mundo todo a verem com suspeitas e até mesmo a odiarem o Ocidente, especialmente os Estados Unidos, por permitir que seus cidadãos violem a santidade do que eles prezam e consideram sagrado", disse.

Após os tumultos no Cairo, muitos egípcios disseram que insultos contra sua fé são mais graves do que qualquer ataque dirigido a uma pessoa viva.

"Quando você machuca alguém, está machucando só uma pessoa", disse o joalheiro Ahmed Shobaky, 42. "Mas, quando você insulta uma fé desse jeito, está insultando toda uma nação que se ressente."

"Prezamos mais nosso profeta do que nossa família e nossa nação", resumiu o religioso Mohamed.

Outros disseram que a explosão de raiva contra o vídeo foi se acumulando durante um longo período de incidentes ofensivos aos muçulmanos e à sua fé, envolvendo os EUA e seus militares.

Embora tenha salientado que nada justifica a violência contra diplomatas e embaixadas, o cientista político Emad Shahin, da Universidade Americana do Cairo, disse ser fácil entender por que os postos diplomáticos dos EUA foram alvo dos manifestantes.

"Há uma guerra em curso aqui", disse ele. "A mensagem [atribuída aos americanos] é que não ligamos para as crenças de vocês -que, por causa da nossa liberdade de expressão, podemos menosprezá-las e degradá-las a qualquer momento, e não ligamos para os sentimentos de vocês."

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