São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2010

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

Haiti emerge do choque e inicia processo de luto

Por DEBORAH SONTAG
PORTO PRÍNCIPE, Haiti - Alguém se lembrará de que a órfã Angelania Ritchelle, 17, uma estudante do ensino médio que queria ser modelo, morreu de medo dois dias depois do terremoto e acabou em uma vala comum na periferia da cidade?
Isso é o que sua prima Emmanuella Dupoux, 23, queria saber. "Angie não era ninguém, morreu como ninguém, nunca terá um enterro, nunca terá uma lápide", disse Dupoux. "Ela é apenas uma das vítimas sem nome e sem rosto, e eu odeio isso."
Na sociedade haitiana, Rudy Bennett, 57, era alguém: um empresário proeminente e irmão de Michele Bennett, ex-primeira-dama e ex-mulher do ex-ditador Jean-Claude Duvalier. Mas sua morte também foi pouco notada.
O terremoto de 12 de janeiro causou uma devastação tão grande que apagou a individualidade de suas vítimas. Segundo o governo haitiano, mais de 230 mil pessoas morreram no desastre, mas inicialmente poucas tiveram cerimônias fúnebres. Até a perda de vida coletiva só foi lembrada em meados de fevereiro, quando o governo decretou um período de luto oficial.
Pouco a pouco, porém, as perdas individuais estão ganhando foco para os haitianos, finalmente prontos para o luto. Funerais ocorrem diariamente, e a tradicional rede de informação de boca em boca conhecida como telediol recomeçou, transmitindo as notícias das mortes.
"Minhas filhinhas morreram no momento exato em que eu fazia planos para seu futuro", disse Frantz Thermilus, chefe da Polícia Judicial do Haiti. Suas filhas Talitha, 12, e Emmanuella, 11, foram esmagadas em sua escola, o Instituto Cristão do Haiti, porque sua mãe se atrasou para buscá-las. Ela foi retardada pelo marido, que insistiu em que parasse primeiro em uma escola de inglês para matricular as meninas em um curso intensivo, ele contou.
O terremoto não apenas levou suas filhas, disse Thermilus, mas permitiu que 5.000 prisioneiros do principal presídio do país escapassem. "Naqueles poucos minutos, muita coisa que era importante para mim desmoronou", disse Thermilus. "A Justiça desfeita, as crianças desaparecidas, a inocência destruída. Estou em luto por tudo isso."
Muitos lamentam as vítimas mais velhas que haviam passado uma vida de adversidades no Haiti. O irmão Hubert Sanon, 85, por exemplo, foi o primeiro membro haitiano da Ordem Salesiana da Igreja Católica, que tem um importante papel cuidando de crianças pobres e órfãs no Haiti.
Os salesianos criaram o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que foi ordenado padre e depois expulso; Aristide dirigiu e radicalizou sua escola vocacional no bairro de La Saline, para onde o irmão Sanon foi enviado depois para restabelecer a ordem, disse o reverendo Sylvain Ducange.
O irmão Sanon morreu em seu dormitório na escola. Ele foi encontrado sentado em sua cadeira, com um rosário na mão, disse o padre Ducange.
Para muitos escritores, a perda de Georges Anglade parece irreparável. Um haitiano-canadense, Anglade inventou um gênero literário no estilo da narrativa oral haitiana. "Ele ajudou o Haiti a compreender a si mesmo, e sua morte é uma grande perda para o mundo intelectual daqui", disse Evelyne Trouillot, romancista e contista.
Angelania, a garota de 17 anos que desejava ser modelo, não deixou nada para trás, segundo sua prima, Dupoux -"Nem um vestido, um diário, um vestígio". Tendo lutado pela própria vida desde que seus pais a abandonaram, aos quatro anos, estava sempre nervosa, e o terremoto pareceu ser demais para ela, disse Dupoux, que morava com a prima.
"Ela estava enlouquecida, gritando: 'Eu não tenho escola, não tenho casa. Não tenho nada. Para que continuar?'", disse Dupoux. "Dois dias depois do terremoto, alguns homens começaram a bater nos portões do quintal onde estávamos dormindo, gritando: 'Um tsunami está chegando!'. Todos entraram em pânico e correram para fora, exceto Angie. Seu coração tinha parado."


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