São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2010

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ENSAIO - MICHAEL SCHWIRTZ

À vontade como exilado na Rússia

MOSCOU - O motorista de táxi era igual a outros milhares de imigrantes aqui: em uma noite de sábado, transportava moscovitas de clube em clube para juntar algum dinheiro e mandar para seus parentes em outras ex-repúblicas soviéticas mais pobres.
Ele concordou com US$ 8 para me levar para casa depois de um casamento e ficou em silêncio enquanto dirigia. Mas não parava de me olhar pelo espelho retrovisor. Finalmente falou: "O senhor não me entrevistou em Shai-Tubeh?"
Seu nome era Abdulsalam, e, sim, tínhamos nos encontrado em junho naquele bairro de Osh, uma cidade do Quirguistão, na Ásia Central. Eu estava cobrindo os tumultos étnicos lá; ele fora uma vítima dos mesmos.
Hoje, a 4 mil quilômetros de casa, ele estava em uma cidade que se tornou um atrativo para as pessoas que buscam refúgio dos vizinhos precários da Rússia. Ele é um entre mais de 10 milhões de trabalhadores imigrantes que estariam vivendo na Rússia. Alguns vêm de tão perto quanto Belarus ou tão longe quanto China, mas a maioria é das terras pobres do Cáucaso ou da Ásia Central.
Eu já havia escrito sobre os milhões de migrantes amontoados nos cortiços nos subúrbios de Moscou. Eu os ouvira descrever as viagens até o centro urbano reluzente para varrer ruas ou fazer outros trabalhos mal remunerados e de ser assediados por policiais e atacados por racistas.
Mas encontrar Abdulsalam, primeiro em Osh e depois por uma estranha coincidência em Moscou, me deu uma sensação mais plena de como eles pensam sobre os mundos diferentes que habitam e o papel de Moscou em suas vidas.
Enquanto bandos de quirguizes étnicos arrasavam os bairros usbeques no verão passado, deixando centenas de mortos, Abdulsalam, um usbeque muçulmano, fugiu com sua mulher e três filhos. Ele mandou a família para o Usbequistão e voltou para Osh para buscar seus pertences. Aos 46 anos, sem trabalho e temendo mais violência, só podia pensar em um lugar para ir.
Abdulsalam nasceu nos anos 1960 no Quirguistão e, quando partiu pela primeira vez em busca de trabalho, há seis anos, só pensou na Rússia. Não parecia estrangeiro; ainda parecia parte de seu país natal. Ele lembrava com afeto do tempo que passou como soldado soviético em Belarus e dos amigos russos com quem cresceu.
"Na época, não havia divisão entre usbeques, quirguizes e russos", disse em russo. "Eu cresci em um ambiente russo, todos os meus amigos eram russos." Mas deixar sua terra por Moscou foi doloroso, e ele não está só nisso. Poucos não russos chegam com a ideia de fincar raízes em Moscou. Eles não são bem recebidos e encontram trabalho, mas não riqueza.
Antes da violência em Osh, Abdulsalam comprava e vendia carros e vivia confortavelmente. Hoje, ele divide um apartamento de um quarto com outros nove trabalhadores de Osh. Faz pausas rápidas para as orações em uma mesquita, mas passa o tempo todo dirigindo seu táxi. Procura um trabalho melhor, talvez como guarda de segurança. Não sabe quanto tempo vai ficar.
"Nós vamos voltar para casa, é claro, porque lá é a nossa terra", disse. Mas, por enquanto, "aqui é mais seguro".


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