São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2009

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Cobrindo Gaza, onde cada lado tem sua própria verdade

Ethan Bronner
Ensaio


Nesta tragédia do Oriente Médio, não existe linguagem satisfatória

GAZA - Faisal Husseini, líder palestino que morreu no começo desta década, costumava contar um caso da sua primeira visita a Israel. A Guerra dos Seis Dias (1967) acabava de terminar, as fronteiras haviam sido repentinamente abertas, e ele foi a Tel Aviv, onde se viu detido por um policial israelense. Pergunta daqui, responde dali, o policial disse: “Como um orgulhoso sionista, devo lhe dizer...”. E então Husseini explodiu numa gargalhada.
Qual é a graça?, quis saber o policial. Husseini respondeu: “Nunca na vida ouvi ninguém se referir ao sionismo senão com desprezo —e eu não tinha ideia de que o senhor poderia ser um orgulhoso sionista”.
Escrevo de forma intermitente sobre o conflito árabe-israelense há mais de um quarto de século e recentemente passei quatro semanas cobrindo a ofensiva israelense em Gaza. Para mim, o caso de Husseini resume como os dois lados falam línguas diferentes, como as próprias palavras que eles usam podem significar coisas opostas e como a guerra da linguagem pode confundir a tentativa de um repórter de narrar —ou a tentativa de um novo presidente de mediar— este conflito de uma forma que ambas as partes considerem justa.
Entre os judeus de Israel, praticamente não há valor mais elevado que o sionismo. Mas vá a qualquer outro lugar do Oriente Médio, e “sionismo” significa roubo, opressão e segregação racial.
Vale a pena, portanto, fazer uma pausa para notar como tem sido difícil narrar este conflito da faixa de Gaza de um jeito considerado neutro. George Mitchell, enviado especial do presidente dos EUA, Barack Obama, para a questão israelo-palestina, deve ter encontrado algo similar ao chegar lá.
Adversários de Israel sentem que os combates de Gaza demonstraram (novamente) que Israel é uma espécie de Esparta que desumaniza os palestinos. As maneiras como Israel atacou —a força devastadora, as pichações racistas deixadas nas paredes— são o que se esperaria daquele Estado, dizem.
Já os que enxergam Israel como vítima, e nunca como agressor, também viram nesta guerra uma reafirmação das suas crenças —de que o Hamas, um grupo terrorista islâmico, esconde seus combatentes entre mulheres e crianças; de que o Exército de Israel foi um exemplo de moderação e respeito.
Sempre que deixo de contar uma versão que cada lado conta para si, aos olhos dessas pessoas eu fracassei no meu trabalho. E isso significa muitos fracassos acumulados.
Desde o início da guerra, em 27 de dezembro de 2008, recebi centenas de mensagens sobre minha cobertura. Em geral não são para cumprimentar pelo bom trabalho. “Graças a você e a outras escórias como você”, escreveu um leitor, “Israel agora pode matar centenas e vocês podem relatar tudo como se tivesse sido algum desastre aleatório de trem”.
“Bronner”, acusou outro, “você voltou ao seu habitual blá-blá-blá a respeito apenas dos pobres árabes imundos —que votaram no pessoal do Hamas, que os colocou nessa situação— com incessantes e indiscriminados disparos de foguetes contra israelenses inocentes”.
Como Israel proibiu jornalistas estrangeiros de entrarem em Gaza até o fim da ofensiva, o “New York Times” recorreu ao trabalho da minha colega palestina Taghreed El Khodary para relatar a situação no território.
A primeira parada dela costumava ser o hospital Shifa, para avaliar as baixas civis. No começo da guerra, no hospital, ela viu pistoleiros do Hamas assassinarem um suposto colaborador de Israel. Um dos pistoleiros disse a Taghreed que ela jamais poderia mencionar a ninguém o que vira. Ela respondeu que não haveria hipótese de se calar.
Dois blogueiros árabes dispararam contra Taghreed o pior insulto de que seriam capazes —sionista. Um leitor disse num e-mail que Taghreed “é completamente cúmplice das atrocidades que Israel comete contra os palestinos em Gaza e na Cisjordânia”. “Vocês fazem com que [o massacre] soe sem culpa e razoável”, acrescentou. “Essa é a missão de vocês.”
Ao mesmo tempo, autoridades de Israel e seus simpatizantes declaram que manter os jornalistas fora de Gaza foi correto, pois não poderia haver jornalismo independente numa área controlada pelo Hamas. Será que alguma dessas pessoas já leu o trabalho de Taghreed? Ou o trabalho de qualquer um de nós aqui?
Muitos leram, mas não importa, porque sua crença no seu próprio ponto de vista é tão dominante que qualquer coisa que o contradiga se torna um mero detalhe. Mas um leitor, de resto crítico, disse algo com o que concordo: “Você não deveria ser repórter se não está contando a história inteira, apenas as partes que vendem”.
Eu ofereceria o mesmo conselho a um mediador.


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