São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2009

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O individualismo, na Índia e nos EUA

Ensaio
ANAND GIRIDHARADAS

VERLA, Índia - Não é sobre vacas ou cobras, nem sobre casamento ou terceirização; não é sobre gurus ou Gandhi. “Quem Quer Ser um Milionário?” (“Slumdog Millionaire”) talvez seja o primeiro filme de projeção internacional sobre a Índia em uma geração a rejeitar as velhas e embaçadas lentes para ver o país.
“Milionário” teve uma boa temporada nos cinemas americanos e ganhou o Globo de Ouro de melhor filme dramático, além de dez indicações ao Oscar (incluindo a de melhor filme). Mas o frescor da obra não está somente em como o Ocidente vê a Índia. Está também em como os indianos veem a si mesmos. Ele retrata uma Índia em mutação como algo a que o país resistiu por muito tempo: uma terra de realizadores, onde um filho da favela pode, por seu próprio mérito, subir na vida, escapar de suas origens e iludir o destino.
E talvez isso explique o estranho fascínio do filme sobre os americanos. Ele os transporta para sua própria fantasia de autoinvenção, e no entanto a coloca longe o suficiente para implicar que hoje é a fantasia de outra pessoa. De fato, depois do caos causado entre os americanos comuns pelo mecanismo impenetrável dos mercados, a mitologia da autodeterminação está sob suspeita nos EUA.
O filme, dirigido por Danny Boyle, que estreia no Brasil em 6 de março,mostra a vida de Jamal Malik, que sai das favelas de Mumbai para concorrer na versão local do programa de TV “Quem Quer Ser um Milionário?”
Na Índia, o clã é tudo. Mas Jamal não precisa de ninguém. Ele não tem pais; seu irmão o trai; até o apresentador do programa, fingindo boa-vontade, o engana. Lá, a hierarquia domina. Mas Jamal segue íntegro e independente.
As antigas restrições eram poderosas: família, casta, fatalidade religiosa, burocracia. Mas a nova tendência é para uma vida individualista em uma cidade sem dono, em uma vocação não herdada.
“Por que todo o mundo adora esse programa?”, Jamal pergunta a uma amiga, assistindo ao programa na TV.
“É uma chance de escapar, não é?”, ela responde. “Entrar em outra vida.”
A oceanos de distância, os EUA foram fundados com a promessa dessa escapada. Seus primeiros colonizadores fugiam de restrições parecidas com as da antiga Índia.
Mas hoje, enquanto o mito do “self-made man” se espalha pela Índia, uma pausa para pensar melhor pode ter começado nos Estados Unidos. Foi em parte o colapso econômico de 2008, em que os supostos senhores do universo afundaram a economia e depois pediram socorro. Foi em parte uma sensação incipiente de que as políticas que promovem o empresário podem esquecer as comunidades. Foi em parte a erosão das famílias americanas.
Enquanto indianos cortam suas amarras, americanos remendam as suas.
Os cientistas estão empurrando o realizador individual de seu pedestal, afirmando que o sucesso é social: que certas culturas geram sucesso, que os genes influenciam as habilidades.
A última eleição foi vencida por um candidato que é “self-made”, mas não se posicionou dessa maneira; em vez disso, falou em raízes e laços.
É das raízes e dos laços que muitos indianos hoje tentam se livrar, e muitos americanos tentam reavê-los. Essa talvez seja a atração de “Milionário” nos EUA. É um tributo ao indivíduo incontível, filmado em uma sociedade que hoje percebe que deu muito pouco à individualidade, visto em uma sociedade que hoje percebe que deu demais ao indivíduo.


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