São Paulo, segunda-feira, 02 de novembro de 2009

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Refém do Taleban

Tomas Munita para o New York Times
David Rohde entrevista camponeses afegãos em meados de 2007, cerca de um ano antes de ser sequestrado no país e levado ao Paquistão

Por David Rohde

O motor do carro rugia enquanto atravessávamos o deserto do Afeganistão. Eu estava sentado no banco traseiro, entre dois colegas afegãos que me acompanhavam numa viagem de reportagem, quando homens armados cercaram nosso carro e nos fizeram reféns.
Um homem armado ocupou o assento do passageiro, virou-se para trás e nos olhou fixamente, agarrando seu fuzil Kalashnikov. Ninguém disse nada. Olhei para a paisagem árida e senti medo. Achei que estaríamos mortos em questão de minutos.
Era 10 de novembro do ano passado, e eu estava indo a um encontro com um comandante do Taleban chamado Abu Tayyeb, na companhia de um jornalista afegão, Tahir Luddin, e de nosso motorista, Asad Mangal. O comandante nos convidara para entrevistá-lo fora de Cabul para um livro que eu estava escrevendo sobre o Afeganistão e o Paquistão.
Quanto mais eu olhava para o homem armado no banco do passageiro, mais nervoso ficava. O rosto dele traía pouca emoção. Pensei em minha mulher e minha família e fui dominado por um sentimento de vergonha. Uma entrevista que algumas horas antes eu vira como crucial agora me parecia absurda e insensata.
Depois de algum tempo, chegamos a uma casa simples de tijolos de barro erguida no centro de um desfiladeiro. Fui colocado dentro de algum tipo de banheiro do tamanho de um armário. Logo os guardas abriram a porta e empurraram Tahir e Asad para dentro, também. Vinte minutos depois, um guarda abriu a porta e mostrou com gestos que devíamos sair ao corredor.
"Não atirar", disse ele, "não atirar". Pela primeira vez naquele dia achei que nossas vidas poderiam ser poupadas. O guarda nos conduziu a uma sala decorada com tapetes marrons e almofadas vermelhas. Sentei diante de um homem forte e atarracado com um "patu" -um lenço afegão tradicional- envolvendo seu rosto. "Sou um comandante do Taleban", ele anunciou. "Meu nome é mulá Atiqullah."
Atiqullah e seus homens nos mantiveram reféns pelos sete meses e dez dias seguintes. Fomos detidos no Afeganistão por uma semana e então levados para as áreas tribais do Paquistão, onde se acredita que Osama bin Laden esteja escondido.
Atiqullah trabalhava com Sirajuddin Haqqani, líder de uma das facções mais linha-dura do Taleban. Os Haqqani e seus aliados nos manteriam reféns em territórios que controlam no Waziristão do Norte e do Sul.
Durante o período de cativeiro, eu disse a nossos captores que éramos jornalistas e tínhamos vindo para ouvir o lado do Taleban da história. Disse a eles que eu me casara recentemente e que Tahir e Asad, juntos, tinham nove filhos pequenos. Chorei, na esperança de que isso os comovesse, e supliquei por liberdade. Todos meus esforços foram inúteis.
Ao longo daqueles meses, acabei por perceber uma verdade simples. Após sete anos atuando como repórter na região, eu ainda não compreendera plenamente até que ponto muitos do Taleban tinham se radicalizado. Vivendo lado a lado com os seguidores dos Haqqani, descobri que a meta da linha-dura do Taleban se tornou imensamente ambiciosa.
O contato com militantes estrangeiros nas regiões tribais parecia ter afetado a muitos combatentes jovens do grupo. Eles querem criar com a Al Qaeda um emirado fundamentalista islâmico que abranja todo o mundo muçulmano.
Eu sabia que o Paquistão finge desconhecer muitas das atividades deles. Mas fiquei espantado com o que encontrei: um mini-Estado do Taleban que floresce impunemente. O que segue é a história de nosso cativeiro ali.
Voei de Helmand (Afeganistão) a Cabul em 9 de novembro, para encontrar Tahir, que trabalhava para o "Times" de Londres e era conhecido como jornalista que podia organizar entrevistas com o Taleban.
Dormi mal na noite antes da entrevista com Abu Tayyeb, o líder do Taleban que iria encontrar. Deixei duas cartas. Uma dava a Carlotta Gall, chefe da sucursal do "New York Times" em Cabul, o local onde o encontro tinha sido marcado e pedia que ela telefonasse à embaixada dos EUA caso não retornássemos até o fim da tarde. A outra era para minha mulher, Kristen, para o caso de algo dar errado.
Fui ao encontro de Tahir e Asad, nosso motorista e vigia. Do carro, enviei uma mensagem de texto a Carlotta, dando o número do telefone de Abu Tayyeb. Disse a ela que ligasse para ele se não recebesse notícias minhas. Chegamos ao lugar marcado para o encontro, mas nenhum dos homens de Abu Tayyeb estava lá. Tahir telefonou a Abu Tayyeb, que nos deu instruções para prosseguirmos pela estrada. Minutos depois, dois homens armados correram para nosso carro gritando comandos em pashtu, a língua local.
Os homens abriram as duas portas da frente e deram ordens a Tahir e Asad para passarem ao banco de trás.
Tahir gritou com os homens em pashtu, enquanto o carro avançava rapidamente pela estrada. O homem armado sentado no banco do passageiro gritava ordens. "Eles querem saber sua nacionalidade", disse Tahir. Hesitei. Ser americano era desastroso, mas imaginei que mentir seria ainda pior. Se descobrissem mais tarde que eu era americano, eu seria imediatamente visto como espião.
"Diga a verdade", falei a Tahir. "Diga que sou americano." Tahir traduziu minha resposta, e o motorista, um homem forte, deu um sorriso grande, ergueu o punho e gritou algo em pashtu. Tahir traduziu: "Eles dizem que vão mandar uma mensagem de sangue a [Barack] Obama".
Quando, mais tarde naquele dia, tive o primeiro encontro com Atiqullah, nosso sequestrador, eu ainda não sabia qual facção do Taleban nos havia raptado.
Com Tahir traduzindo, explicamos que tínhamos sido convidados a ir à Província de Logar para entrevistar Abu Tayyeb, comandante do Taleban. Falei que tinha sido correspondente do "New York Times" no sul da Ásia de 2002 a 2005. Descrevi artigos que escrevera sobre a guerra da Bósnia e disse a ele que cristãos ortodoxos sérvios me prenderam lá depois de eu ter exposto o massacre de muçulmanos.
Atiqullah não se comoveu. Ele recusou nosso pedido para telefonarmos a Abu Tayyeb. Disse que agora era ele quem controlava o que seria feito de nós. Várias horas depois do pôr-do-sol, fomos enfiados numa pequena van.
"Temos que mudar vocês de lugar por razões de segurança", disse Atiqullah, que estava sentado no lugar do motorista, com o rosto ainda coberto pelo lenço. Durante a hora seguinte, ele prometeu fazer tudo o que estivesse a seu alcance para nos proteger. Prometi a ele dinheiro -"milhões"- e prisioneiros.
Passamos os quatro dias seguintes em outra casinha de barro. Até que Atiqullah anunciou que teríamos que atravessar as montanhas andando. Caminhamos por 11 horas. Eu disse a mim mesmo que estávamos caminhando para o sul do Afeganistão, não para o Paquistão. Disse a mim mesmo que íamos sobreviver.

O EMIRADO ISLÂMICO
Onde americanos não têm vez
Em vez disso, em 18 de novembro chegamos às áreas tribais do Paquistão, um cinturão isolado de território controlado pelo Taleban. Estávamos no chamado "emirado islâmico" -o Estado fundamentalista que existia no Afeganistão antes da invasão liderada pelos EUA em 2001. A perda de milhares de vidas afegãs, paquistanesas e americanas e bilhões de dólares em ajuda americana apenas deslocaram o Estado alguns quilômetros para o leste, não o eliminaram.
Pode-se argumentar que é o pior lugar no mundo para ser um refém americano. O governo dos EUA não tem nenhuma influência ali e é desprezado e odiado. A primeira casa paquistanesa em que ficamos presos ficava em Miram Shah, a capital do Waziristão do Norte. Dois dormitórios grandes davam para um pequeno pátio.
Durante o dia todo, militantes paquistaneses desfilavam ao lado da casa para nos olhar com curiosidade. Entre eles estava um comandante local do Taleban, que apresentou-se como Badruddin. Ele era irmão de Sirajuddin Haqqani, que comandava a rede Haqqani, uma das mais poderosas facções do Taleban na região. Miram Shah era seu reduto. Badruddin, que aparentava ter pouco mais de 30 anos, disse que estava se preparando para fazer um vídeo conosco para divulgar junto à mídia.
Disse a Atiqullah que não devíamos fazer o vídeo e que seria mais provável que os governos americano e afegão concordassem com uma troca de prisioneiros secreta do que uma pública.
Disse a ele que seria mais fácil obter a libertação de prisioneiros da prisão nos arredores de Cabul conhecida como Pul-i-Charkhi, administrada por afegãos. Se o Taleban exigisse prisioneiros das prisões de Guantánamo ou Bagram, jamais os conseguiria.
Falei a Atiqullah que eu não valia tanto assim e que ele deveria buscar um acordo de meio-termo. Além disso, eu queria poupar minha família do sofrimento de me ver em um vídeo. Para minha surpresa, Atiqullah concordou.
"Sou uma dessas pessoas que gostam de buscar acordos", ele disse em certo momento. Atiqullah enfatizou que queria chegar rapidamente a um acerto para o pagamento de resgate. Ele continuava a cobrir seu rosto com o lenço. Para mim, isso significava que não queria ser identificado, porque pretendia nos libertar.
Naquele dia conversei com minha mulher pela primeira vez em nove dias. Eu previra pânico ou lágrimas, mas ela soou calma. Suas palavras "vai ficar tudo bem" permaneceriam na minha cabeça por meses. A compostura dela me daria forças.
Depois dos telefonemas fomos levados a outra casa, e novamente me surpreendi com as boas condições. A casa tinha eletricidade regular e água quente.
Atiqullah disse que precisava voltar ao Afeganistão, mas dois de seus homens permaneceram para nos vigiar. "Vou retornar daqui a sete a dez dias", prometeu. Naquela semana, para nos ajudar a passar o tempo, ganhamos um rádio de ondas curtas e um jogo de tabuleiro chamado "checkah". Para meu espanto, os guardas chegaram a me trazer jornais paquistaneses em inglês. Em lugar de nos espancar, como eu previra, nossos captores estavam tentando atender a algumas de nossas necessidades.
Mas as razões para otimismo dariam lugar a realidades duras. Nas próximas noites, uma sucessão de comandantes do Haqqani, cheios de ódio em relação aos EUA e a Israel, chegaram para nos ver, desferindo críticas ríspidas que continuariam durante os meses de nosso cativeiro.
Eles diziam que civis em grande número tinham sido mortos em Afeganistão, Iraque e territórios palestinos. Dezenas de homens tinham sido encarcerados em Cuba e no Afeganistão por anos sem acusações formais. Para meus captores, eram provas de que os Estados Unidos são uma potência hipócrita que passa por cimas das leis internacionais.
Quando eu dizia a eles que era um civil inocente que deveria ser libertado, eles respondiam que os EUA tinham mantido muçulmanos presos em centros de detenção secreta e os torturado durante anos. Por que, perguntavam, deveriam me dar um tratamento diferente?
Dez dias se passaram, mas Atiqullah não retornou, como prometera. Agora Badruddin parecia estar no comando. Ele nos transferiu para uma casa menor e mais suja. A comida me dava náuseas. Qualquer senso de urgência quanto a nossa soltura parecia estar desaparecendo. Antes de partir, Badruddin me disse que o Taleban não me mataria. "Você é a galinha dos ovos de ouro", falou.
Atiqullah finalmente voltou, alguns dias antes do Natal. Anunciou que tinha notícias espetaculares. "Estamos aqui para libertar vocês", disse, pela primeira vez se mostrando sem lenço cobrindo o rosto.
Num primeiro momento, fiquei eufórico. Mas, então, na mesma noite, a conversa tomou um rumo ameaçador. Atiqullah disse que os militares americanos tinham montado uma operação para prender Abu Tayyeb -o líder do Taleban que iríamos encontrar quando fomos sequestrados- na manhã em que íamos entrevistá-lo.
Chocado, falei a Atiqullah que eu não sabia nada sobre uma operação militar, e ele respondeu que eu era um espião. A conversa sobre nossa soltura iminente se mostrou uma farsa.
Na manhã seguinte, Atiqullah insistiu em que havia um trato, sim. Disse que seríamos trocados em questão de dias. Mas comecei a duvidar de tudo o que ele dizia. Então fiquei sabendo que ele mentira para nós desde o início.
Tahir e Asad me disseram que Atiqullah era, na realidade, o próprio Abu Tayyeb. Eles sabiam disso desde o dia do sequestro, mas não tinham ousado me contar. Pediram que eu mantivesse silêncio. Abu Tayyeb lhes tinha dito que os decapitaria se revelassem sua verdadeira identidade.
Abu Tayyeb nos convidara para nos dar uma entrevista, nos traíra e então se fizera passar por um comandante chamado Atiqullah. Fiquei profundamente deprimido, com só uma certeza: não encontraríamos um salvador entre o Taleban.

O REDUTO DE HAQQANI
Conquistando adeptos
Meu cativeiro confirmou minha suspeita de que os Haqqani comandavam um grande pseudo-Estado do Taleban nas áreas tribais, com a concordância "de facto" do Exército paquistanês. Os Haqqani tinham tanta confiança no controle deles sobre a região que um dia me levaram -eu, a quem viam como refém de valor extraordinário- num passeio de carro de três horas, em plena luz do dia, para gravar um vídeo.
Ao longo do inverno eu viria a conhecer a realidade que os Haqqani tinham criado. Meus captores criticavam o Ocidente por matar civis, mas comemoravam ataques suicidas orquestrados pelo Taleban que matavam dezenas de transeuntes muçulmanos comuns. Se queixavam de que muçulmanos inocentes eram encarcerados pelos EUA, ao mesmo tempo em que continuavam a nos manter em cativeiro.
Porém, no nosso dia a dia, quando os comandantes não estavam presentes, alguns de nossos guardas manifestavam momentos de humanidade. Aqueles momentos nos davam esperança.
Tahir, Asad e eu tínhamos recebido cartas reconfortantes de nossas famílias, por meio do do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Mas eu não falava com minha mulher, Kristen, havia três meses.
Finalmente, em 16 de fevereiro, Abu Tayyeb me levou de carro a um local isolado e me deixou ligar para ela. O Taleban me mandou dar a ela o número do celular deles e pedir que ela nos ligasse de volta. Naquele momento, exigiam US$ 7 milhões pela minha liberdade, mas eram pão-duros demais para pagar pelo telefonema.
"Este é meu último telefonema", eu disse a Kristen, repetindo o que eles me tinham mandado falar. "É nossa última chance."
Abu Tayyeb prometeu que chegaria a um acordo financeiro com minha família. Então, como antes, ele foi embora sem fazê-lo. As conversas que tive com ele durante sua visita rápida me fizeram pensar que ele jamais faria concessões em um caso envolvendo um americano.

TALEBAN x AVIÕES AMERICANOS
Permanecendo vivo
No dia 25 de março, mísseis disparados por um avião americano não tripulado destruíram seu alvo a poucas centenas de metros da casa onde estávamos, numa aldeia nas áreas tribais do Paquistão.
Duas semanas antes, nossos captores nos tinham transferido de Miram Shah para Makeen, cidade no Waziristão do Sul e reduto do líder do Taleban paquistanês, Baitullah Mehsud. A região fervilhava de militantes uzbeques, árabes, afegãos e paquistaneses.
Mais tarde, fiquei sabendo que um guarda tinha pedido que eu fosse levado ao local do ataque, em meio a mísseis e pessoas decapitadas, com uma câmera de vídeo registrando o momento. O guarda-chefe passou por cima dele e não deixou.
Os militantes criticaram duramente os ataques dos aviões americanos, e meus captores expressaram mais ódio por Barack Obama -por ter intensificado os ataques com mísseis nas áreas tribais do Paquistão e aumentado o número de soldados americanos no Afeganistão- do que por George W. Bush.
A cada mês que passava nós nos sentíamos mais e mais esquecidos e à mercê dos jovens guardas que viviam conosco. Em meados de março, um deles chegou com um aparelho de DVD. A partir daquele momento, assistir a vídeos jihadistas virou o passatempo predileto dos guardas. Os vídeos eram pouco mais do que filmes tenebrosos e repetitivos que retratavam mortes e violência reais.
Comecei a ter medo de que os vídeos estivessem promovendo uma lavagem cerebral em nosso motorista, Asad. Depois de nossa chegada a Makeen, Asad pareceu mais amigável em relação aos guardas e começou a carregar um Kalashnikov que eles lhe tinham dado. Ele também parou de fumar, coisa que os guardas disseram ser proibida pelas normas do islã. Eu dizia a mim mesmo que Asad estava apenas fazendo o que era preciso para seguir vivo.
No final de abril, uma visita surpresa de Abu Tayyeb nos deu esperanças de que nossa liberdade estivesse sendo negociada. Então ele me falou que eu teria que chorar em um novo vídeo que ele queria fazer. Olhei para Tahir. Se eu me recusasse, o Taleban poderia matá-lo ou matar Asad, para aumentar o valor de um possível resgate.
Eu odiava a ideia de minha mulher, Kristen, e minha família assistirem a tal vídeo, mas Tahir era pai de sete filhos, e Asad tinha dois. Concordei em fazer a gravação.
Eu disse a Abu Tayyeb que ficaríamos lá "para sempre" se ele não reduzisse suas exigências. "Você é um espião", falou Abu Tayyeb. "Você sabe que é espião." Eu respondi que era jornalista. Então tentei fazê-lo passar vergonha diante de seus homens. "Deus sabe qual é a verdade", falei. "E Deus vai julgar todos nós."
Abu Tayyeb desapareceu na manhã seguinte. Passamos as seis semanas seguintes em uma nova casa em um povoado no Waziristão do Norte. No início de junho, Abu Tayyeb reapareceu e anunciou que o governo americano estava oferecendo trocar os sete prisioneiros afegãos remanescentes em Guantánamo por nós.
Falei a ele que isso era ridículo. Ele sorriu. Se eu fizesse mais um vídeo, falou, seríamos libertados. Envergonhado do meu vídeo anterior e convencido de que ele estava mentindo mais uma vez, me recusei.
Abu Tayyeb repetiu a ordem, e eu voltei a dizer "não". Eu sabia que era uma atitude insensata, mas resistir a ele me deu uma tremenda sensação de libertação, após meses de submissão.
Pressentindo que Abu Tayyeb e seus homens iam me espancar, Tahir e Asad me pediram para fazer o vídeo. Cedi, finalmente. Mas no final do vídeo incluí uma mensagem que vinha querendo transmitir desde o dia em que tínhamos sido sequestrados.
"Seja como for que isto termine, Kristen e todos meus familiares e amigos, vocês devem viver em paz consigo mesmos", eu disse. "Sei que vocês fizeram absolutamente tudo o que puderam para nos ajudar."

A FUGA
Uma corda e um plano
Era 1h da manhã de 20 de junho, em Miram Shah, no Waziristão do Norte, Paquistão. Após sete meses e dez dias em cativeiro do Taleban, Tahir e eu tínhamos decidido tentar fugir.
Tínhamos chegado ao complexo em Miram Shah na primeira semana de junho. Era o nono lugar no qual estivemos presos nas áreas tribais. Como eu tinha feito cada vez que chegávamos a um lugar novo, varri o chão e recolhi o lixo, para criar um ambiente de ordem. Foi então que encontrei uma corda usada para puxar um carro que estivesse atolado. Pensando que talvez pudéssemos usar a corda numa fuga, eu a escondi sob uma camisa e uma calça velha.
Nos dias seguintes, tentei pensar em maneiras pelas quais pudéssemos fugir. Quando os guardas nos deixaram sentar com eles sobre o telhado da casa, ao anoitecer, observei que o local era cercado por um muro de mais ou menos 1,5 metro de altura. Pensei que, se conseguíssemos subir o muro, poderíamos usar a corda para descer até a rua.
Ao mesmo tempo, Tahir passou a examinar a área em volta da casa quando os guardas o levavam com eles para comprar alimentos e assistir a partidas de críquete, uma ou duas vezes por semana. Ele concluiu que a casa ficava mais próxima da base principal da milícia paquistanesa em Miram Shah que qualquer outra casa em que já tínhamos estado presos.
Com medo de que os guardas ou Asad pudessem nos ouvir, Tahir e eu falávamos o mínimo possível sobre como seria nossa fuga. Algumas semanas antes, tínhamos decidido que não podíamos mais confiar em Asad. Naquela tarde, Tahir e eu tomamos a decisão dolorosa de partir sem ele, temendo que ele contasse aos guardas sobre nossos planos de fuga.
Nosso rompimento com Asad se tornara o aspecto mais deprimente de um cativeiro já sombrio. Porém, mais tarde, eu ficaria sabendo que também ele conseguiu escapar.
Na realidade, eu imaginava que nossa tentativa de fuga fosse fracassar rapidamente. Em vez disso, para meu espanto total, nosso plano funcionou. Naquela noite, depois de Tahir e eu chegarmos até o pátio, eu busquei a corda, e subimos na ponta dos pés por uma escada que chegava ao telhado da casa. Pouco depois eu estava caminhando livremente por uma rua, pela primeira vez em sete meses.
Tahir tinha me dito anteriormente que havia um posto de verificação próximo à casa, mantido por uma milícia do governo paquistanês. Mas eu ainda pensava que nossa melhor chance seria nos entregarmos a um oficial militar na base paquistanesa em Miram Shah. "Temos de ir à base principal", eu disse.
Cinco minutos depois, gritos irromperam à nossa esquerda, e ouvi um Kalashnikov sendo carregado. Tahir pôs as mãos ao alto e disse algo em pashtu. Um homem gritou ordens em pashtu. Pus minhas mãos ao alto, apavorado. Sob a luz fraca, vi uma figura com um Kalashnikov em pé sobre o telhado da casa térrea dilapidada.
"Se você se mexer, eles vão atirar em nós", disse Tahir. Então ele pronunciou as palavras em que eu mal pude acreditar: "Estamos na base". Tínhamos conseguido chegar até os paquistaneses.
Pela primeira vez naquela noite me ocorreu que pudéssemos de fato conseguir. Uma fuga -um final com o qual eu nunca sonhara- poderia ser nossa salvação. Fiquei com as mãos ao alto e esperei.
Pouco depois chegou um oficial paquistanês sênior. Ele falou com Tahir em um tom de voz que me pareceu tranquilizador. "Ele é uma pessoa muito educada", disse Tahir. "Estamos sob a proteção deles. Estamos em segurança."
A impotência que eu sentira durante meses começou a ficar para trás. Estávamos perto de poder voltar para casa.
Uma hora depois, um soldado trouxe um cartão telefônico, e anotei o número de minha casa numa folha de papel. O capitão discou o número no telefone que havia sobre sua mesa e me passou o aparelho. Na segunda tentativa, Kristen atendeu. "David?", disse ela, ofegante. "David?"
"Kristen", falei, desfrutando a chance de dizer as palavras que eu vinha sonhando havia meses em dizer a ela.
"Kristen, por favor me deixe passar o resto de minha vida compensando você por tudo isso." "Deixo", ela disse. "Deixo, sim."


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