São Paulo, segunda-feira, 02 de novembro de 2009

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ENSAIO

CLIFFORD J. LEVY

Apatia na Rússia ante fraude eleitoral

MOSCOU - Logo depois que as urnas se fecharam nas eleições regionais russas do mês passado, um blogueiro que se refere a si próprio como Uborshizzza trancou-se em seu apartamento em Moscou e começou a digitar os resultados em seu computador.
Ele levou apenas algumas horas para detectar o que considerou um padrão evidente de fraude eleitoral: de que outro modo seria possível que, em distritos com índices suspeitosamente elevados de comparecimento, o partido do premiê Vladimir Putin tenha recebido montanhas de votos?
Uborshizzza, que de dia é um estatístico médico de 50 anos chamado Andrei Gerasimov, esboçou gráficos para acompanhar suas conclusões e publicou um relatório em seu blog. Este se espalhou pela internet, juntamente com conclusões semelhantes de um pequeno grupo de detetives amadores.
Seu grito foi: esta eleição foi suja! Exigimos uma nova! A reação do país, porém, foi desviar os olhos. Não houve nada do tipo de revolta nas ruas que ocorreu no Irã em junho, quando os seguidores do presidente reeleito, Mahmoud Ahmadinejad, foram acusados de manipular a eleição em seu favor. Nem o clamor internacional que recebeu a recente eleição no Afeganistão, considerada tão suja que o presidente Hamid Karzai foi forçado a um segundo turno.
A aparente ousadia da fraude e a falta de uma reação forte diz muito sobre a profunda apatia que há na Rússia, cuja população se desiludiu com a política sob o comunismo e não viu muitos motivos para mudar de opinião.
O pensamento parece ser de que Putin está no comando e que a oposição é fraca, por isso não adianta tentar-se fazer ouvir, mesmo que o país enfrente sérios problemas. "As pessoas são passivas porque sentem que não há absolutamente uma chance de mudar o sistema", disse Gerasimov.
A eleição também salientou a rude dinâmica política da Rússia. Putin, primeiro-ministro e ex-presidente, é popular em parte porque recebe créditos pelos ganhos econômicos e a estabilidade da última década. Ele também suprimiu ou cooptou a oposição. Justa ou injustamente, seu partido, Rússia Unida, obteve enorme vantagem nas eleições de 11 de outubro e tinha certeza de vencer.
Mas o Rússia Unida decidiu não apenas derrotar a oposição, como esmagá-la. Tal é o impacto da chamada vertical de poder, uma estrutura que é um traço definidor da era Putin. O Kremlin exerce uma autoridade concentrada e mantém rédeas curtas com os funcionários regionais, que sempre acatam os que estão no topo.
Antes da eleição, as autoridades regionais souberam que seriam consideradas responsáveis se o Rússia Unida não se saísse bem. Elas pareceram responder fazendo o possível para garantir sua vitória avassaladora -e preservar seus cargos.
As autoridades sabiam que podiam agir com relativa impunidade por causa do predomínio da Rússia Unida no governo, assim como pela indiferença do público.
"Parecia que a pressão para fornecer os resultados necessários superava qualquer temor de ser apanhado", disse Sergey Shpilkin, 47, morador de Moscou e físico por formação que faz um blog sob o codinome Podmoskovnik.
O comparecimento oficial na eleição para a Câmara da cidade de Moscou foi de 36% dos eleitores registrados, mas Shpilkin participou de uma equipe que estimou que o verdadeiro número foi 22%, com os votos extras inadequadamente atribuídos ao Rússia Unida.
O partido ganhou 32 dos 35 assentos, com três para os comunistas. Shpilkin disse que outros dois ou três partidos de oposição deveriam ter conseguido assentos. (Depois da eleição presidencial de 2008, Shpilkin fez um estudo inovador. Ele mostrou que um número desproporcionalmente elevado de colégios eleitorais tinha índices de comparecimento geral que acabavam em 0 ou 5, sugerindo que tinham sido falsificados. Além disso, distritos com maior comparecimento tinham um apoio incomumente alto ao vitorioso, o protegido de Putin, Dmitri Medvedev.)
Outro blogueiro que publicou uma análise da eleição de outubro disse que a atitude do público traz à mente um ditado russo: "Minha cabana fica na borda da aldeia; não sei de nada", que fala sobre a relutância em se envolver.
"Infelizmente, esse sentimento prevalece hoje na sociedade", disse o blogueiro, que assina seus posts como "Capitão Sangue" e vive em São Petersburgo.
Pesquisas de opinião nos últimos anos o reforçam. Uma delas mostrou que 94% dos entrevistados acreditavam que não podiam influenciar os acontecimentos na Rússia. Segundo outra, 62% não achavam que as eleições refletiam a vontade da população. Putin declarou que a votação foi de modo geral justa, ecoando os reguladores eleitorais com ligações estreitas com o Kremlin.
Mas as evidências são difíceis de ignorar. O comparecimento geral foi de 18% em um distrito de Moscou, e o Rússia Unida conseguiu 33%. Em um distrito adjacente, o comparecimento foi de 94%, e o partido obteve 78%.
Sergey Mitrokhin, líder do partido liberal Yabloko, que perdeu seus dois assentos na Câmara na eleição, votou no Distrito 192, assim como sua família e amigos íntimos. Na contagem oficial, o Yabloko não recebeu votos.


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