São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2010

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INTELIGÊNCIA/MATTHEW CARR

Os invisíveis de Oujda

Oujda, Marrocos
Há três décadas os governos europeus travam uma campanha cada vez mais inclemente para impedir que migrantes sem documentação cruzem ou mesmo cheguem até suas fronteiras.
Nos últimos anos, a cidade de Oujda, no nordeste de Marrocos, se tornou um dos muitos lugares onde essa obsessão produziu sombrias consequências humanas.
Vibrante cidade moderna com 500 mil habitantes, a apenas 15 km da divisa com a Argélia, o significado de Oujda na guerra das fronteiras europeias deriva em parte da sua localização estratégica na trilha migratória que cruza o Saara.
Desde 1994, a fronteira de Oujda está fechada por razões políticas, mas, para muitos migrantes que atravessam o deserto, ela continua sendo uma plataforma vital na sua aproximação com a terra prometida europeia.
Oujda fica a apenas 150 km da cidade litorânea de Melilla, mas, para as autoridades marroquinas, a sua proximidade com o deserto a torna um local adequado para onde deportar migrantes detidos em outras partes do país.
De fato, ela se tornou um microcosmo de um fenômeno mais amplo, em que os sonhos dos migrantes são confrontados com o implacável maquinário da Fortaleza Europa.
Na segunda metade de 2005, milhares de africanos subsaarianos foram deportados para cá e abandonados no deserto sem água nem comida, depois de uma tentativa em massa de escalar as cercas fortificadas em torno de Ceuta e Melilla, encraves espanhóis no norte de Marrocos. Muitos morreram antes que o governo marroquino recuasse e fizesse uma operação de resgate.
A reação da União Europeia a tais fatos chocantes foi reforçar suas fronteiras meridionais, deixando estimados 10 mil migrantes retidos em Marrocos. Aproximadamente 700 deles vivem em Oujda e arredores.
Alguns estão acampados no espaçoso campus da Universidade Mohammed 1?, em abrigos feitos com plásticos e cobertores. Outros vivem nas matas nos arredores da cidade, ou mais perto da fronteira.
Viajando com funcionários da ONG Médicos Sem Fronteiras pela rodovia abandonada que liga Oujda à divisa argelina, passamos por playgrounds, hotéis e restaurantes desertos, em meio a prados repletos de flores primaveris, onde contrabandistas passam de lá para cá em motonetas, quase cobertos por cargas de garrafas plásticas cheias de gasolina argelina.
Essa surreal paisagem fronteiriça é uma zona de violência, miséria e exclusão, onde homens, mulheres e crianças migrantes vivem em pobreza abjeta. Quase ninguém trabalha, e as pessoas sobrevivem mendigando ou vendendo miudezas.
Seus precários acampamentos são frequentemente invadidos pela polícia, que deporta os moradores para a beira do deserto, onde provavelmente serão estuprados ou atacados por bandidos, ou devolvidos por guardas fronteiriços argelinos, num pingue-pongue humano sem remorsos.
"Vivemos como coelhos aqui", diz Anthony, um jovem nigeriano. "Nós nos escondemos de dia e saímos à noite." Algumas pessoas vivem assim há anos. Entre elas há esteticistas, cabeleireiras, mecânicos, soldadores e aspirantes a astros do futebol, que fugiram da pobreza e da violência em busca de um sonho europeu cada vez mais elusivo.
Muitos passam por terríveis e inacreditáveis jornadas para tentar conquistar o que a maioria dos europeus acha natural: segurança e oportunidade econômica. Agora, sua juventude e suas habilidades estão sendo desperdiçadas nas matas.
Num acampamento conheci Dolita, que deixou Kinshasa, na República Democrática do Congo, para pedir asilo na Europa. Dois meses atrás, ela foi deportada com seus três filhos, inclusive um recém-nascido, para a beira do deserto. Foi salva apenas por um tenaz ativista local dos direitos humanos, Hicham Baraka.
Tais intervenções são raras. Exceto pelo apoio que recebem da organização comunitária de Baraka e da Médicos Sem Fronteiras, esses homens e mulheres são pessoas indesejáveis e invisíveis, que Europa e Marrocos gostariam que desaparecessem.
A maioria é cristã, e nos seus acampamentos frequentemente ecoam orações, aleluias e batuques. Teoricamente, os governos europeus cujas políticas criaram essa miséria humana deveriam fazer um esforço para assegurar que essas pessoas sejam tratadas com humanidade e respeito, mas a Europa permanece em silêncio.
E, como os imigrantes nas favelas demolidas de Calais, na França, e de Patmos, na Grécia, os africanos apátridas de Oujda estão recebendo um remédio amargo para serem curados dos seus sonhos europeus.
"Todos nós acreditamos em Deus e pedimos que nos ajude", me disse um nigeriano. Por enquanto Deus não parece estar ouvindo. Nem o resto do mundo.

Matthew Carr é autor de"Blood and Faith: the Purging of Muslim Spain". Envie comentários para intelligence@nytimes.com



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