São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2011

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

América, a ideia

EUA mantêm sua influência sobre o imaginário global

Londres
"Atire neles."
A ordem veio de um soldado líbio leal ao regime de Muammar Gaddafi. Quatro jornalistas, meus colegas, estavam deitados e amarrados ao chão. Nenhum deles pensou que fosse sobreviver. Em seguida, outro soldado disse: "Não pode. São americanos."
Essas quatro palavras reverberam há dias na minha mente. Tenho me perguntado o que a América representa para o soldado que deu a contra-ordem. Ponderei se seria medo ou admiração ou uma combinação de ambos. Tentei substituir por outra nacionalidade -chinesa ou francesa, digamos-, mas não me convenci. Perguntei a mim mesmo como, na poeira de Ajdabiya, a América seria uma blindagem.
É o poder da América como ideia que a distingue e a transforma em um ser transnacional. Muitas vezes essa idéia é maltratada, como foi na última década, mas nenhum outro país tem tanta influência, ainda, sobre o imaginário global.
Em algum lugar -na sua infinita capacidade de renovação, no seu apelo ao que há de melhor na nossa natureza, em sua corporificação da fronteira, na sua concepção universal de nação- a América ressoa, mesmo em uma planície árida da Líbia, onde, décadas atrás, os Aliados enfrentaram Rommel.
Durante os anos em que cobri a guerra da Bósnia, achei refugiados reclamando de serem enviados para a Alemanha, quando era para os EUA que desejavam ir; e se eu os pressionasse quanto ao local, eles costumavam dizer: "Chicago". A razão para a escolha era consistente: "Al Capone". Pode ser um gângster. Ou pode ser a liberdade. Pouco importa qual é o chamariz. O vernáculo americano está em toda parte, uma referência visual, cultural e linguística, sem a qual parece impossível enquadrar nossas vidas.
Nenhuma potência emergente -nem a China, nem a Índia, nem o Brasil- sequer começou a assumir esse papel. Esses países podem ser alvo de interesse, mas não foram internalizados, não chegaram a habitar os nossos sonhos. Não foi nenhuma surpresa que Rússia, Brasil, Índia e China se abstivessem na resolução da ONU que autorizou o uso da força para proteger os civis na Líbia.
São potências do "cuide da sua vida". Sua intenção, por enquanto, é a constante acumulação de riqueza.
Seu poder material cresce, mas seu impacto emocional sobre o mundo é estático. Como observou o presidente Obama na sua tardia justificativa para a missão na Líbia, "algumas nações podem ser capazes de fazer vista grossa às atrocidades cometidas em outros países; os Estados Unidos da América são diferentes".
Fico tentado a dizer que a diferença está no poder dessa palavra, América, de salvar quatro vidas no calor da batalha.
Mas é claro que a diferença, imaginária ou real, é também uma provocação.
Há gente por aí que odeia a América, e alguns, como os assassinos do jornalista Daniel Pearl, matam sem escrúpulos. O excepcionalismo americano -a ideia de que sua vocação como um farol universal da liberdade a distingue de outros Estados- pode puxar a nação para os caminhos traiçoeiros da crença messiânica em si mesmo.
A sua forma mais crua -esse "dane-se o mundo", visto na extrema direita americana- é a receita para uma perigosa ilusão; uma forma de cegueira num momento em que os EUA estão sem dinheiro e confrontados por potências emergentes com seus próprios interesses.
Mas é igualmente uma forma de cegueira negar a diferença da América. Eu não nasci americano. Eu me tornei. E assim passei por um rito de iniciação intrínseco à formação de uma nação com força de vontade. A América é uma escolha. É uma nação entendida como uma voz ativa, não passiva.
Como observou Archibald MacLeish: "A ideia americana, literalmente e realisticamente, é a América; se não considerássemos essas verdades óbvias, se não tivéssemos acreditado que todos os homens são criados iguais, se não tivéssemos acreditado que são dotados, todos eles, de certos direitos inalienáveis, nunca teríamos nos tornado americanos, e sabe-se lá o que poderíamos ter nos tornado".
Aquele soldado líbio nunca leu tais palavras. Talvez nunca tenha nem ouvido falar em Al Capone. E mesmo assim havia algo, uma força inefável. Meus pensamentos se voltam para um tio da minha primeira mulher, um jovem chamado Robert Lund, de Minnesota, morto e sepultado em 1943 no norte da África. É demais imaginar que esse rapaz do Meio-Oeste deu sua vida para que a América, a ideia, pudesse viver -e de quebra salvar quatro amigos meus?

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