São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2010

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Violência contra mulheres cresce no Haiti


Após terremoto, país vive "clima ideal" para estupros

Por DEBORAH SONTAG

PORTO PRÍNCIPE, Haiti - Dormindo em acampamentos, na rua e em pátios desde o terremoto de 12 de janeiro, muitos haitianos se sentem à mercê não apenas da natureza, mas daqueles que exploram o sofrimento alheio.
Tantos casos de estupro passam sem registro ali que as estatísticas contam apenas uma parte da história. Mas os números existentes, da polícia ou de grupos femininos, indicam que a violência contra as mulheres disparou nos meses após o terremoto.
Os sequestro são raros, mas também aumentaram, e "a ameaça é constante", disse Antoine Lerbours, porta-voz da Polícia Nacional haitiana.
Malya Villard, diretora da Kofaviv, organização popular que apoia as vítimas de estupro, disse que a presença de milhares de prisioneiros que escaparam durante o terremoto agravou um ambiente em que a insegurança e o desespero se alimentam mutuamente.
"É o clima ideal para o estupro", ela disse.
Villard contou que as duas dúzias de funcionárias da Kofaviv em Porto Príncipe haviam atendido 264 vítimas desde o terremoto, o triplo do número do período equivalente em 2009. As detenções por estupro são inferiores -169 em todo o país até maio, mas mais prisões foram feitas nos últimos meses do que durante o mesmo período do ano passado.
Desde o terremoto, grupos de ajuda internacionais manifestaram preocupação quanto à violência contra as mulheres, especialmente nos acampamentos sob sua guarda. Iluminação fraca ou inexistente, banheiros sem tranca, chuveiros adjacentes de homens e mulheres e proteção policial inadequada foram problemas constantes.
Recentemente, a segurança em oito grandes acampamentos melhorou, com postos de polícia ou patrulhas conjuntas do Haiti e da ONU; cerca de cem policiais femininas de Bangladesh chegaram no final de maio para lidar com a violência de gênero em três acampamentos. Mas existem cerca de 1.200 deles por todo o Haiti.
Em 10 de maio, Rose, uma garota escultural de 22 anos que está estudando para ser esteticista, saiu para comprar biscoitos. Um policial que ela conhecia a chamou para sentar-se em seu carro particular, ela disse. Ela foi, e então dois homens mandaram o policial sair do carro, tomaram sua arma e levaram o carro com Rose.
Os homens a jogaram no banco de trás e a fizeram deitar-se de rosto para baixo. Ela não sabe para que bairro a levaram, só que havia muitas casas destruídas. Quando ela protestou contra entrar em uma delas, a espancaram e a forçaram a passar pela porta em ruínas. Eles a empurraram para um pequeno espaço embaixo de um teto caído.
"Eu estava muda de medo", ela relatou. "Só quando eles me estupraram eu gritei. Doeu."
Segurando a pélvis enquanto falava, Rose disse que os homens se revezaram, estuprando-a sete vezes. "Ou talvez oito", disse, fechando os olhos.
O policial apareceu na casa de Rose na manhã seguinte em que ela foi levada, para contar a sua família o que havia acontecido. "Ele esperou a noite toda enquanto nós ficamos acordados, aterrorizados", disse o cunhado dela. "Ele estava procurando o carro. Nós dissemos: 'E Rose?' Ele disse: 'Vamos procurá-la, mas vocês vão ter notícias dela primeiro'."
Os sequestradores usaram o celular de Rose para telefonar, colocaram no viva-voz e lhe bateram várias vezes para que sua família a escutasse gritar de dor.
"Eles pediram US$ 50 mil", disse seu tio, um vendedor. "É uma loucura. Não tenho 10 gourdes [moeda haitiana]. Mas eles disseram: 'Não se dê ao trabalho de procurar um sacerdote vodu. Ele não pode ajudá-los. Ou de chamar [Barack] Obama. Ele também não pode ajudá-los. Dê o dinheiro ou vamos matar a garota'."
A família conseguiu juntar 2.000 gourdes entre os vizinhos. O dinheiro foi deixado no local combinado na tarde de domingo. Às 3h da manhã de segunda-feira, Rose teve os olhos vendados e foi colocada na garupa de uma mototáxi. Quando chegou em casa, ela caiu em posição fetal na porta.
Ela já tinha trocado de roupas e tomado banho, sem saber que isso impediria a coleta de evidências. Mas a polícia não levantou a questão, de qualquer maneira, disse sua família.
Quando a polícia saiu, Rose pegou um carro e foi até uma clínica dos Médicos Sem Fronteiras, gemendo de dor. A enfermeira disse que a clínica tinha tratado cerca de 60 vítimas em maio.
Quando Rose foi chamada para ser examinada em uma tenda, ela tropeçou, tonta de fome. A enfermeira lhe deu alguns pacotes de biscoitos. Rose foi dispensada com um punhado de camisinhas e caixas de antibióticos para doenças sexualmente transmissíveis, tratamento anti-HIV, pílulas para vaginite e analgésicos comuns.
Quando ela saiu, seu tio -que Rose chama de "papai"- a viu à distância com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
"Oh, linda criança", ele disse. "Olhe nos meus olhos e você saberá como eu me sinto. Quando tudo isso vai terminar? Será que não sofremos o suficiente?"


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